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Os tesouros de Erasmo Carlos

O Tremendão ou Gigante Gentil se foi aos 81 anos. O parceiro do Rei se lançou em voos diferentes em sua carreira solo que garantiram seu lugar como grande personagem da música brasileira. Lembramos pérolas pop e ousadias do enorme Erasmo

Imagem: Divulgação

Até dói no coração escrever novamente sobre uma pessoa gigantesca da música brasileira em tão pouco tempo depois da morte de Gal Costa. Agora foi Erasmo Carlos, parceiro de composições de Roberto Carlos e um artista-solo imenso que se safou de viver à sombra do amigo.

Morreu aos 81 anos nesta terça (22/11) no Rio de Janeiro. Uma semana depois de ganhar um Grammy Latino por seu último álbum, lançado no começo do ano.

Encerra-se a trajetória daquele adolescente Erasmo Esteves que foi convertido ao rock’n’roll e a Elvis Presley em meados dos anos 1950. Que se reuniu com outros garotos do bairro carioca da Tijuca, no Rio de Janeiro, que atendiam pelos nomes de Roberto Carlos, Tim Maia e Jorge Ben para tocar a música que adoravam.

O alto e forte Erasmo que virou cantor da banda Renato e Seus Blue Caps e lançou álbum em 1963. Que começou a compor intensamente com o amigão Roberto quando este iniciou para valer sua carreira pop-rock que pouco depois foi batizada de Jovem Guarda, graças ao programa da TV Record (1965-1968) no qual Roberto Carlos era apresentador e Erasmo e Wanderléa eram apresentadores coadjuvantes.

Uma parceria que fez Erasmo Esteves virar Erasmo Carlos porque o agitador cultural Carlos Imperial achava que era legal ele ter o mesmo “sobrenome” que seu co-compositor. E assim Erasmo iniciou sua carreira individual de cantor como Erasmo Carlos.

A história é longa. E recomenda-se a autobiografia “Minha Fama de Mau” para quem quiser saber mais. Por aqui, vamos apenas selecionar músicas do cantor Erasmo Carlos dignas de guardar para ouvir sempre que se quiser saber quem ele foi.

– Festa de Arromba (1965)

O primeiro megahit de Erasmo. Um rock típico da Jovem Guarda, aceleradinho e leve nos instrumentos. Ao citar quase todos os nomes do universo em torno do programa “Jovem Guarda”, Erasmo criou uma divertida coluna social semelhante às de revistas de fofocas da época. Moderno, pop, autorreferente. Uma letra completamente diferente do que vigorava até então nas rádios brasileiras.

– A Pescaria (1965)

A música-título do álbum de estreia de Erasmo. Um ritmo relaxado caribenho malandro que lembrava o cantor Harry Belafonte. Com uma letra que parecia piada. “Mas os peixes não querem cooperar / se eu não pescar nenhum, com que cara vou ficar?” Na década de 1970, foi resgatada numa propaganda dos cigarros Continental, muito populares na época.

– Beatlemania (1965)

Outra faixa hilária do álbum de estreia. Erasmo promete: “Vou acabar com a beatlemania”. A razão: o benzinho dele só presta atenção nos Beatles. O machão que Erasmo encarnava nesse período inicial chama os rapazes de Liverpool para uma briga: “Podem vir todos quatro, eu não temo ninguém”. Um solo ao estilo Chuck Berry eleva a faixa, cujo vocal de Erasmo parece gravado num banheiro no fim do andar.

– Minha Fama de Mau (1965)

A marca registrada de Erasmo, que batizou sua autobiografia. Novamente o “machão” banca o durão com a namorada. Mas você sabe muito bem que a pose será desmontada pela moça e a suposta misoginia não existe de verdade.

– É Duro Ser Estátua (1966)

Um rock ié-ié-ié acelerado como de costume na Jovem Guarda que é uma obra-prima de humor de Erasmo, que se imagina como uma estátua de praça louco por causa do monte de “brotos” (garotas, para pessoas que não viveram a época) que passam por sua frente. O verso “Pombos na cabeça, o frio é de doer, na outra encarnação gente eu quero ser” é maravilhoso. Faz parte do álbum “Você Me Acende”.

– Gatinha Manhosa (1966)

Uma baladinha supostamente romântica embalada pelo som de órgão típico da Jovem Guarda. O “supostamente romântica” se deve às sugestões mais sensuais de possessividade e dominação que a letra sugere.

– O Caderninho (1967)

“Eu queria ser o seu caderninho pra poder ficar juntinho de você”… Parece pueril, mas fez muito sucesso quando lançado. E seguia a escola temática meio suspeita aos olhos de hoje perpetrada pelo blues “Good Morning, Little Schoolgirl”, dos anos 1940.

– Vem Quente Que Eu Estou Fervendo (1967)

Outra música-tema do Erasmo durão dos anos 1960, parte do álbum “O Tremendão”. Um rock Jovem Guarda com acordes tensos que funcionaram.

– Nunca Mais Vou Fazer Você Sofrer (1968)

Do álbum “Erasmo”. Um intenso soul apaixonado, pontuado por arranjos de cordas que dão mais dramaticidade.

– Para o Diabo os Conselhos de Vocês (1968)

Um rock “sinistro” e revoltado com o mundo marcado por uma guitarra distorcida que, como era de praxe nos estúdios brasileiros de então, soa como um mosquito. Mas a tentativa de fazer algo mais rebelde que já antecipava o que viria (ex.: Black Sabbath, bem melhor gravado) é válida.

– Sentado à Beira do Caminho (1970)

É difícil não achar que esta faixa do álbum “Erasmo Carlos e Os Tremendões” seja a maior obra de Erasmo em sua carreira. Uma balada triste de separação, apreensão pelo futuro e desejo de reagir e se recompor para a vida. Tudo isso levado pelo simbólico órgão da Jovem Guarda, agora muito mais sensível aos sentimentos de um adulto.

A fase era difícil. Após o fim do programa “Jovem Guarda” da TV Record em 1968, Erasmo sentiu-se sem rumo na vida. Desse dilema saiu esta joia eterna.

– Coqueiro Verde (1970)

O parceiro de Roberto no dito ié-ié-ié brasileiro faz um samba moderno, bem-humorado e delicioso. O Erasmo fase adulta e independente nascia.

– Vou Ficar Nu Para Chamar Sua Atenção (1970)

A melodia até lembra a de “Sentado à Beira do Caminho”, mas esta canção está mais para provocação sensual que funciona muito bem.

– De Noite na Cama (1971)

Faixa de abertura do álbum “Carlos, Erasmo…”, composta por Caetano Veloso, era uma batucada de cozinha para todo mundo cantar junto que consolidava a nova fase homem adulto do cantor.

– É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo (1971)

No mesmo álbum, um rock soturno, às vezes psicodélico, com crescimentos do arranjo nas passagens entre as estrofes, com toques de violinos e solo de saxofone. Nos anos 1990, continuaria parecendo moderna. E não no Brasil, mas no Reino Unido.

– Agora Ninguém Chora Mais (1971)

Erasmo transforma a levada de samba de Jorge Ben, lançada seis ou sete anos antes, num hino com arranjo rock-soul pesadinho.

– Maria Joana (1971)

Uma batucada em transe com um título que nem precisa de maiores explicações. Isso num momento em que a repressão de tudo pela ditadura militar do presidente-general Emílio Garrastazu Médici tocava o terror no país. É até espantoso que a música tenha ido às lojas.

– Sou uma Criança, Não Entendo Nada (1974)

No LP “1990 – Projeto Salva Terra!”, uma faixa com um som que lembrava muito o que o ex-beatle George Harrison produzia então. Esta música pegou, especialmente por causa do mantra que é o título da canção.

– Cachaça Mecânica (1974)

Um samba lento e recitativo com uma estrutura muito semelhante à de “Construção”, de Chico Buarque. Não é plágio. É outra forma de lidar com o modelo. Se na canção anterior um trabalhador da construção civil despenca na rua e atrapalha o tráfego, nesta de Erasmo um enlouquecido entupido de cachaça morre pisoteado num Carnaval. “Morreu de samba, de cachaça e de folia”, reflete o existencialista Erasmo.

– Filho Único (1976)

A faixa de abertura do LP “Banda dos Contentes” foi sucesso no ano seguinte ao ser incluída na trilha sonora da novela da Globo “Locomotivas”. Mas é mais uma bela reflexão das dores do crescimento como era a já citada “Sou uma Criança, Não Entendo Nada”.

– Paralelas (1976)

Uma inesperada interpretação sóbria e intimista da composição de Belchior que se tornou o maior clássico dos programas de calouros de TV. Não por causa da versão de Erasmo, mas da de Vanusa, lançada na mesma época. A gravação de Erasmo supera de longe as de Belchior e Vanusa,

– Panorama Ecológico (1978)

A primeira faixa do LP “Pelas Esquinas de Ipanema” fez algum sucesso quando lançada e depois acabou esquecida. Um protesto ecológico de Erasmo num rock suave típico dos anos 1970. Que demonstra as preocupações com meio ambiente e sociedade que o artista mantinha.

– Pega na Mentira (1981)

Erasmo ensaiou uma guinada para sua persona puro pop de rádio com o álbum “Erasmo Carlos Convida”, de 1980, em que ele fazia duetos com convidados. Logo depois, lançou esta música que foi um dos mais pegajosos sucessos nacionais, com versos como “Zico tá no Vasco… Com Pelé”. Antecipando fake news em cerca de 40 anos.

– Mulher (Sexo Frágil) (1981)

O álbum “Mulher” era nitidamente inspirado no “Double Fantasy” que John Lennon lançou dois meses antes de sua morte em parceria com a esposa Yoko Ono em 1980. Erasmo não teve a esposa Narinha como parceira (a não ser na foto da capa), mas encarnou a ideia de um artista maduro, na meia-idade, que abandonava de vez aquele machão durão dos anos 1960. Com sensibilidade, Erasmo demonstra nesta canção uma dedicação e respeito às mulheres.

– Mesmo Que Seja Eu (1982)

Do álbum “Amar pra Viver ou Morrer de Amor”, é uma balada-rock tocante em que o narrador tenta despertar o alvo de seus afetos de suas fantasias para viver um amor real com alguém mais, digamos, comum e humano. O verso “Sei que você fez os seus castelos / que sonhou ser salva do dragão / desilusão, meu bem / quando acordou estava sem ninguém” é impressionante.

– Close (1984)

Do LP “Buraco Negro”, um sucesso que quase atingiu os níveis de “Pega na Mentira”. Era uma canção pop dedicada a Roberta Close, a estrela trans que foi capa da revista “Playboy” e dominou o imaginário brasileiro naquele ano. O problema é que a música gerou uma indústria de fofocas sobre uma possível relação sexual entre Erasmo e Roberta que provocou uma suposta tentativa de suicídio da esposa dele, Narinha.

– Jogo Sujo (2009)

Erasmo seguiu lançando trabalhos depois de 1984, mas impacto mesmo ele só veio a causar com seu álbum de sexagenário Rock’n’Roll. Não que tenha sido grande sucesso, mas foi muito elogiado. Com merecimento. Esta faixa de abertura é um imponente e sóbrio rock de adulto, com arranjo seco e honesto e uma guitarra com distorção fuzz que até remete ao rock de garagem dos anos 1960.

– Além do Horizonte (2014)

Do álbum “Gigante Gentil”, é uma releitura de Erasmo para sua composição com Roberto Carlos que virou clássico assim que saiu em 1975 na voz do amigo. O arranjo rock é ousado.

– A Volta (2022)

A composição de Roberto & Erasmo para a dupla Os Vips nos tempos da Jovem Guarda. No século 21, Roberto resgatou a música para uma trilha sonora de novela numa versão mais próxima aos anos 1960 no arranjo. Mas Erasmo preferiu realizar uma versão mais rock dos anos 1980 em seu último álbum, “O Futuro Pertence à Jovem Guarda”, lançado no começo de 2022 e premiado com o Grammy Latino de Melhor Rock em Português.

– Bônus: Roberto

Uma amizade de mais de 60 anos não é algo desprezível. E os dois maiores tributos de Roberto Carlos ao “irmão” deixam claro a profundidade desse elo afetivo.

Parece incrível hoje, mas Roberto e Erasmo brigaram e se distanciaram por volta de 1966-67. O rompimento foi sério e Roberto assinou sozinho todas as suas composições do LP “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”. Eles tiveram por anos um acordo à moda de Lennon & McCartney, em que qualquer música feita por apenas um era creditada à dupla.

No álbum seguinte de Roberto, “O Inimitável”, o Rei (já voltando a se entender com o amigão), abriu o coração na faixa “As Canções Que Você Fez Pra Mim”, em que deixava explícito o buraco emocional que a ausência do parceiro lhe deixou: “Ficaram as canções e você não ficou”. Ou “Pois sem você meu mundo é diferente, minha alegria é triste”.

Em 1977, Roberto compôs e gravou “Amigo”, um clássico instantâneo até hoje. No tradicional programa de fim de ano de RC na Globo, ele dedica a canção a Erasmo, que parece pego de surpresa na tela, como se não soubesse da existência da música.

Atuação ou surpresa de verdade. o abraço com emoção pura e muitas lágrimas de Erasmo e Roberto no fim da música é a imagem mais perfeita de todos esses programas do Rei na Globo. E talvez a imagem mais perfeita do que foi Erasmo Carlos, o Gigante Gentil.

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