Texto: Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP
“Os jovens pesquisadores precisam saber que não existe melhor período para a pesquisa em oncologia do que hoje.” A fala da presidente da Associação Americana para Pesquisa do Câncer (AACR, na sigla em inglês), Patricia LoRusso, não é um exagero. Desde que começou a atuar na área, a pesquisadora vivenciou um enorme avanço nas descobertas sobre a biologia de tumores.
“É um período de grande entusiasmo na oncologia. Há vários anos, desde a clonagem do genoma humano, tem ocorrido uma série de descobertas sobre o câncer. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido e, para avançarmos ainda mais, é preciso juntar forças”, avalia a cientista com mais de 30 anos de experiência em oncologia médica, desenvolvimento de medicamentos e ensaios clínicos de fase inicial que resultaram em 14 medicamentos contra o câncer aprovados pela Food Drug Administration (FDA, a agência de vigilância sanitária norte-americana).
De passagem pelo Brasil, onde participou do evento AACR on Campus Brazil – promovido em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) entre segunda (19/02) e sexta-feira (23/02) desta semana –, a pesquisadora conversou com a Agência FAPESP sobre a importância de captar jovens pesquisadores para o estudo da oncologia, o futuro da pesquisa clínica em câncer e sobre potenciais novas descobertas na área.
Agência FAPESP – Os últimos anos foram repletos de novas descobertas para a oncologia. No entanto, parece que ainda há muito que investigar. Isso ocorre pelo fato de o câncer ser uma doença muito complexa?
Patricia LoRusso – De fato estamos em um período de grande entusiasmo, pois atualmente temos muitas ferramentas para aumentar o entendimento sobre o câncer. Desde a clonagem do genoma humano, há vários anos, tem ocorrido uma série de descobertas sobre a biologia da doença. No entanto, eu acredito que o motivo de ainda não termos atingido todos os objetivos é multifatorial. Embora tenha ocorrido um avanço muito grande no entendimento da doença, o câncer é muito mais complexo do que aquilo que sabemos. A segunda causa é que as drogas que temos desenvolvido atingem um, no máximo dois dos chamados cancer hallmarks [conjunto de capacidades funcionais adquiridas pelas células humanas cruciais para a formação de tumores malignos]. No entanto, os tumores têm muitos hallmarks. E diferentes tumores apresentam diferentes hallmarks durante a progressão da doença. Outro aspecto importante está no trabalho em laboratório. É preciso entender de cultura celular, modelos in vivo [humanos e animais], mas também precisamos descobrir o que está acontecendo nos pacientes durante o tratamento. Outra complexidade envolve a capacidade de oferecer aos pacientes os ensaios clínicos, para que possamos estudar os problemas referentes ao câncer. E, nesse aspecto, existe algo que chamamos de reverse translation, ou seja entender o que está acontecendo no paciente a partir da análise de amostras. Portanto, estamos falando de complexidades múltiplas. São muitos os desafios que vão desde a bancada do laboratório até a clínica, passando pela medicina translacional. Atualmente, estamos apenas desenvolvendo as ferramentas para a medicina translacional. Precisamos ainda entender como usar as ferramentas, sem ficar passando de uma para outra a esmo. Parte do entendimento sobre o tratamento do câncer está na compreensão de quando tratá-lo. Existe uma questão de timing, pois as diferenças que ocorrem em um tumor estão associadas ao ponto exato em que ele passou a ser tratado.
Agência FAPESP – Um dos objetivos centrais do programa ACCR on Campus e do Centro de Estudos e Tecnologias Convergentes para Oncologia de Precisão – recém-inaugurado na USP – é atrair e dar suporte a jovens pesquisadores em início de carreira. Por que isso é uma preocupação?
Patricia LoRusso – Porque o câncer é um inimigo forte. Ele é mais esperto do que somos nesse momento, pois é multifacetado. É por isso que precisamos colocar todas as tropas em ação. Nesse cenário, precisamos apoiar profissionais em início de carreira [junior faculty] porque é na mão deles que está o futuro da pesquisa em câncer. Caberá a eles, no futuro, entender a doença melhor do que a entendemos agora, para tratá-la de maneira mais eficiente. Portanto, sem esse apoio, podemos perder a próxima geração de médicos e cientistas que vai levar as investigações adiante.
Agência FAPESP – Quando a senhora iniciou a carreira, a abordagem de tratamento consistia basicamente em atacar o tumor. Atualmente, isso parece ter ganhado mais camadas, certo?
Patricia LoRusso – Sim, existem muitas camadas no que concerne ao tratamento do câncer. E é preciso levar em conta que o câncer também não é linear. Como inimigo, ele é um continuum [uma série de elementos sequenciais, que apresenta diferença entre os primeiros elementos e os finais]. No entanto, eu acredito que o grande inimigo nesse caso seja o minuto exato em que a célula cancerosa surge no organismo ou até mesmo antes disso. Precisamos entender como prevenir o câncer.
Agência FAPESP – A senhora defende que tão importante quanto entender o motivo de uma droga funcionar é compreender por que ela não funcionou. Por quê?
Patricia LoRusso – Isso é importantíssimo. Desenvolvemos drogas com base na biologia da doença e a partir de uma hipótese. Mas o teste em seres humanos acontece muitas vezes levando em conta o que foi observado em atividades e sistemas de modelos pré-clínicos. E então esperamos que isso funcione. Mas como vamos saber o que fazer depois de um teste se não entendemos por que a droga não funciona? Na maioria dos casos, quando um ensaio clínico dá negativo é o fim da linha. Ninguém olha as amostras obtidas dos pacientes que participaram desses ensaios clínicos para entender por que não funcionou. Só que, como eu disse, câncer é um continuum e, quando um ensaio clínico dá errado, parte desse continuum pode ser a resistência a uma droga. E, assim como a resposta a um tratamento, a resistência tem várias faces. É importante entender isso. Quando uma droga funciona buscamos entender os diferentes mecanismos pelos quais isso ocorre. Mas, se vamos entrar num nível verdadeiramente personalizado de tratamento contra o câncer e olhar os tumores de indivíduos, é igualmente importante compreender os mecanismos de resposta e de resistência a uma droga. Especialmente quando se trata de um câncer metastático. Como vamos tratar pacientes com uma nova linha de fármacos se não entendemos o que está acontecendo no tumor?
Agência FAPESP – A senhora tem falado muito na próxima geração de drogas. Para onde vamos?
Patricia LoRusso – Bom, isso depende. Atualmente, estamos desenvolvendo drogas a partir de alvos moleculares que têm como base as assinaturas genéticas. Mas quão funcionais são essas assinaturas? Como saberemos se esses genes são de fato significativos e estão fazendo algo que resulte no crescimento do tumor? Não sabemos muito sobre isso ainda. Por isso ferramentas como proteômica são tão importantes nessa corrida por novas drogas e pelo entendimento da biologia da doença. Com elas podemos olhar a funcionalidade molecular e identificar quais são as diferenças. E podemos criar estratégias, combinar tratamentos. Mas ainda existem tantas perguntas sem respostas no tratamento do câncer. Pois não se trata apenas de uma questão sobre uma classe ou um tipo de droga. É preciso trabalhar com uma quantidade enorme de drogas com base em uma quantidade enorme de conhecimento que já temos para entender a biologia da doença. É por isso que ainda estamos longe da cura de pacientes metastáticos. Na minha opinião, ainda não é possível dizer que a próxima geração de drogas será de uma determinada classe ou de outra, ou novas drogas. Não é possível fazer essa previsão. Precisamos ter um olhar contínuo para os diferentes tipos de classe de drogas. Também é possível que a nova geração seja a combinação de algumas drogas, dado que a biologia do câncer é tão complexa.
Agência FAPESP – E como as novas tecnologias podem ajudar os cientistas a desenhar os ensaios clínicos?
Patricia LoRusso – Algumas dessas novas tecnologias estão nos ajudando a entender o que faz com que o tumor cresça, por exemplo. E, com isso, talvez possamos consertar o processo. É o que tem feito tecnologias como o proteoma, o transcriptoma – em especial uma abordagem chamada transcriptoma espacial [que procura revelar padrões de expressão gênica nos microambientes tumorais e associá-los ao desenvolvimento de terapias]. Quando utilizamos essas tecnologias, não necessariamente precisamos ter uma hipótese. Nesses casos você olha os dados e percebe o que está fazendo o tumor crescer. Com isso a abordagem muda, pois conseguimos entender mais a biologia da doença. Deixa de ser importante, por exemplo, focar apenas em aumentar o repertório de células T para atacar o tumor e evitar que ele cresça – até o tumor provavelmente tem suas células T, mas, por algum motivo, elas não estão funcionando – e passamos a tentar descobrir o que está dando errado para que possamos fazer isso dar certo novamente.
Agência FAPESP – A senhora acredita que, em um futuro próximo, seja possível tratar com eficiência e até curar um câncer metastático?
Patricia LoRusso – Bom, esse é o meu sonho. Quer saber o que eu acho que devemos fazer para realizá-lo? Na pesquisa em câncer, temos diferentes grupos buscando os mesmos objetivos, porém, trabalhando em bolhas. Precisamos furar as bolhas e colocar cientistas para trabalhar com médicos, pacientes e cientistas translacionais. Isso aumentaria ainda mais a nossa compreensão sobre a doença. Não por acaso, isso é exatamente o que estamos tentando fazer atualmente. Acredito que o programa AACR on Campus é uma forma de a AACR tentar entender como podemos ajudar a formar times que trabalhem juntos.