Enquanto muitos adultos se identificam como “pais” ou “mães” de cães e gatos (e até de plantas), os peixes costumam ser “pets” mais populares entre crianças. A impressão de muita gente é que esses bichinhos aquáticos não fazem nada além de ficar nadando de um lado para o outro dentro de uma caixa de vidro. No entanto, muitas pesquisas mostram que esses animais são muito mais inteligentes do que imaginamos, sendo capazes até mesmo de usar ferramentas e desenvolver personalidades.
Recentemente, Jorge Seif Júnior, secretário de Aquicultura e Pesca, se pronunciou em um vídeo ao lado do presidente Jair Bolsonaro sobre as manchas de petróleo que têm afetado o litoral brasileiro. “O peixe é um bicho inteligente. Quando ele vê uma manta de óleo ali, capitão, ele foge, ele tem medo. Então, obviamente, você pode consumir o seu peixinho sem problema nenhum. Lagosta, camarão, tudo perfeitamente sano”, disse o secretário.
Para entender se o peixe é realmente inteligente o suficiente para fugir do óleo e como esse desastre ambiental pode influenciar seu comportamento, consultamos especialistas sobre o tema para este Giz Pergunta. Todos ressaltaram que os peixes são, de fato, muito mais inteligentes do que as pessoas imaginam e que, obviamente, percebem as manchas de petróleo. Contudo, nem sempre desviar delas é algo simples e isso não impede que eles sejam contaminados.
“Os peixes, assim como os humanos, podem perceber uma determinada situação de perigo e não ter capacidade de fugir porque esse perigo está ocorrendo em uma escala que é incompatível com sua mobilidade”.
Alexander Turra
Professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), atuando nas áreas de Ecologia Marinha e Gerenciamento Costeiro. É membro do Grupo de Trabalho do GESAMP (Grupo de Especialistas sobre Aspectos Científicos da Proteção do Ambiente Marinho).
Os peixes são muito inteligentes. Eles têm vários sistemas sensoriais, sendo um deles baseado na visão e outro baseado na percepção química do ambiente. Então, eles percebem mudanças da qualidade da água, assim como nós percebemos as mudanças na qualidade do ar. Ou seja, os peixes conseguem perceber a mancha de óleo, mas o grande problema é a sua capacidade de agir. Os peixes, assim como os humanos, podem perceber uma determinada situação de perigo e não ter capacidade de fugir porque esse perigo está ocorrendo em uma escala que é incompatível com sua mobilidade. Por exemplo, se você está em um ambiente e, de repente, começa a sentir um cheiro de gás, você vai tentar fugir disso, mas é preciso ter uma noção de onde é a região que não tem gás. A mesma coisa vale pra uma tempestade, você pode perceber que ela está vindo, tentar ir no sentido contrário, mas às vezes esses fenômenos vêm de uma forma muito forte, muito rápida, muito abrangente, então não tem como fugir. Isso pode acontecer com a mancha de óleo em relação ao peixe.
Os peixes têm uma grande capacidade de aprendizado e um bom exemplo disso são aqueles visualmente orientados que acabam se deparando com alimentos que são inadequados para consumo, como esponjas, que são muito coloridas. Assim como as aves com as lagartas, eles acabam associando a cor ao gosto desagradável e aprendem a deixar de consumi-los e evitar aquele determinado tipo de alimento. Além disso, eles têm outros aprendizados relacionados a comportamento reprodutivo. Alguns peixes agora fazem atividades muito elaboradas de cortejamento, de oferta, sinais para as fêmeas de que eles são machos apropriados para o acasalamento – e tudo isso faz parte de um comportamento inato, mas que também tem elementos aprendidos ao longo da vida.
Em termos comparativos, os peixes são vertebrados, assim como aves, répteis e mamíferos. Ou seja, eles têm o cérebro centralizado, razoavelmente bem desenvolvido em relação aos invertebrados, e utilizam basicamente dois mecanismos cruciais para sobrevivência: busca por alimento e fuga de predadores. Porém, dentre os vertebrados, nós temos os mamíferos em um extremo e os peixes e os anfíbios no outro, que apresentam uma clara diferença na capacidade de aprendizado. Os peixes são animais parecidos com os outros vertebrados em termos de centralização do sistema nervoso, mas possuem um repertório um pouco mais rudimentar em relação ao que pode ser visto nos primatas, que somos nós.
Já o comportamento social não é algo muito disseminado em peixes, e eles se manifestam em diferentes graus e níveis. Por exemplo, em um cardume há um comportamento de grupo ou social que acaba diluindo a chance de predação de um indivíduo. No caso da mancha de óleo, um dos principais problemas são os efeitos crônicos, que são imperceptíveis em um primeiro momento, porque eles não levam à morte imediata, eles vão fazer o animal sofrer influências, mudanças fisiológicas que vão impactar a reprodução, o crescimento e o próprio comportamento. Há várias pesquisas que estudam o efeito da exposição a hidrocarboneto em laboratório para mostrar como os animais estão sendo afetados. E tem estudos que mostram efeitos no DNA, levando à fragmentação do DNA, efeitos fisiológicos como a geração de proteínas de estresse ou prejuízo no crescimento e reprodução, além de prejudicar a percepção do ambiente.
E esse fenômeno da percepção do ambiente pode levar a uma complexidade de reações especialmente pelo fato de o animal perder a capacidade de perceber presas, as características do ambiente e acabar tornando-se mais suscetível à predação. Além disso, essas manchas desprendem muitos elementos, muitas moléculas que não são visíveis, mas que ficam presentes na água e que passam a fazer parte do peixe tanto pela absorção pelas brânquias quanto pelo alimento que ele consome via cadeia alimentar. Então, organismos menores vão passar essa contaminação para o peixe ao ser ingerido e isso eventualmente vai parar nos outros predadores ou consumidores desses animais, como nós.
“Em geral, os peixes são tão inteligentes como a maioria dos animais terrestres. Eles têm capacidades fantásticas de aprendizado e memória”.
Culum Brown
Professor Associado da Macquarie University (Austrália) e editor do The Journal of Fish Biology. Grande parte de seu PhD na University of Queensland e pós-doutorado em Cambridge teve como foco o reconhecimento de predadores e comportamento social dos peixes, com ênfase em aprendizado social.
Primeiramente, grande parte do óleo estará na superfície da água, então não irá afetar a maioria das espécies de peixes por algum tempo. Apenas quando começar a coagular ou se misturar com a água é que isso terá um impacto. A dificuldade é que isso é um fenômeno não natural e os peixes (ou qualquer outro animal) não estão equipados para lidar com isso. Não existe uma resposta natural de fuga ao óleo.
Em geral, os peixes são tão inteligentes como a maioria dos animais terrestres. Eles têm capacidades fantásticas de aprendizado e memória. Eles se reconhecem e se associam de forma preferencial, têm personalidades e podem até contar. Alguns deles, como o “tuskfish”, usam ferramentas. Suas habilidades de navegação espacial são tão boas, se não melhor, quanto qualquer animal terrestre. Eles conseguem aprender por meio de aprendizado individual ou social e este último pode resultar em tradições ou culturas passadas de geração em geração. No geral, eles são muito mais sofisticados do que as pessoas imaginam.
É possível que os peixes possam detectar os efeitos tóxicos dos compostos de óleo na água e tentem fugir dele, mas é difícil imaginar como isso poderia funcionar, especialmente se o derramamento ocorrer em larga escala. Isso pode, por exemplo, fazer com que eles se movam mais para baixo na coluna de água para evitar as camadas tóxicas da superfície. Isso depende muito da resposta fisiológica ao óleo. Há relatos de rins inchados e mudanças na frequência cardíaca e respiratória, o que sugere que há uma resposta a tóxicos e estresse ao nível fisiológico, mas não está muito claro como isso pode impactar o comportamento deles.
“Os peixes nunca encontraram catástrofes antropogênicas como derramamentos de óleo em sua história evolucionária e, portanto, não estão equipados com as habilidades para demonstrar uma resposta apropriada”.
Alex Jordan
Pesquisador principal no Max Planck Institute Department of Collective Behaviour (Alemanha), membro do conselho editorial do The American Naturalist and Movement Ecology, e é Pesquisador bolsista Senior na University of Texas, em Austin
Embora seja fantástico saber que políticos estão se tornando mais conscientes da inteligência de outros animais, incluindo peixes, e é verdade que os peixes têm capacidades cognitivas incríveis, essa afirmação [do Secretário Jorge Seif Júnior] parece um pouco exagerada. O principal problema é que mesmo os animais inteligentes precisam ter experiências com um problema para poder resolvê-lo. Os peixes nunca encontraram catástrofes antropogênicas como derramamentos de óleo em sua história evolucionária e, portanto, não estão equipados com as habilidades para demonstrar uma resposta apropriada.
Os peixes têm muitas das mesmas capacidades avançadas de mamíferos, sendo capazes de coisas como reconhecimento individual, memória espacial, numerosidade, enganar, inferência transitiva e resolução de problemas muito complexos.
A primeira coisa a se lembrar é que metade de todos os vertebrados são peixes. Por isso, para cada coisa inteligente que outro animal consegue fazer, quase certamente existe um peixe que pode fazer o mesmo. É claro que nenhum peixe tem a combinação de tantos traços de “inteligência” como, por exemplo, de um primata, mas alguns chegam bem perto.
A interação entre a atividade humana e o comportamento natural dos peixes é algo que estudamos muito em meu laboratório. Embora os impactos exatos dos derramamentos de óleo sejam imprevisíveis, em geral, é correto dizer que muitos comportamentos naturais dos peixes são impactados pelas mudanças causadas por humanos ao meio-ambiente. Por exemplo, em muitas regiões do mundo, o aumento do nível do mar significa que os peixes começaram a habitar locais que antes eram habitados por humanos. Isso pode mudar drasticamente o comportamento social desses peixes assim como sua composição de comunidade. Eu imaginaria que os impactos dos derramamentos de óleo, ao matar grandes quantidades de espécies e limitar o alimento disponível, teria um efeito devastador ainda maior que a maioria das atividades humanas no mar.