De 1347 a 1351, um pesadelo devastou a Europa, afligindo as vítimas com verrugas pretas putrefaças, febres, vômitos e, rapidamente, a morte. A vida cotidiana parou enquanto a Peste Negra se espalhou por rotas de comércio medievais, levando estimadamente 20 milhões de vidas com uma eficácia implacável. Agora, uma equipe de pesquisadores está afirmando que a praga teve um impacto inesperado: limpar o ar de um poluente tóxico pela primeira vez em mais de mil anos.
A poluição por chumbo é normalmente considerada um marco da sociedade industrial, mas um número cada vez maior de pesquisas sugere que a atividade humana tem contaminado o ar com metais pesados há milênios. Resultados de uma nova análise de núcleo de gelo, publicada na semana passada no periódico GeoHealth, reforça a ideia de que, ao menos na Europa Ocidental, as atividades de mineração e fundição contaminaram o ar com chumbo por pelo menos 2.000 anos. Na verdade, o único período curto de tempo durante o qual os instrumentos dos cientistas detectaram um ar livre de chumbo foi de 1349 a 1353, quando as pessoas estavam, presumivelmente, ocupadas demais morrendo aos montes para poder trabalhar nas minas.
“Com o fechamento das minas, você pode ver os níveis de chumbo caindo a zero”, contou Alexander More, historiador da ciência na Universidade Harvard e autor principal do novo estudo, em entrevista ao Gizmodo. “Podemos voltar ao mês da chegada da praga, e você pode ver a queda imediata, junto com a atividade de mineração.”
More e seus colegas dizem que suas descobertas têm implicações para políticas de saúde e ambientais de hoje, sugerindo que os níveis de chumbo “de pano de fundo natural” — como os vistos durante os anos da praga — são próximos de zero. Mas outros especialistas contatados pelo Gizmodo foram céticos quanto a essa afirmação, dizendo que mais dados precisavam ser coletados para confirmar que a poluição do ar despencou durante a Peste Negra e que a razão pela qual isso aconteceu foi a redução da atividade industrial.
Esses pesquisadores certamente não são os primeiros a apontarem que as sociedades pré-industriais estavam contaminando o ar com chumbo, que era usado na produção de vinho, canos, na cunhagem de moedas no Império Romano, vitrais e telhados da Europa medieval e na fundição de prata na América do Sul colonial. Os registros de lagos de sedimento alpinos na Espanha até mesmo indicam altos níveis de poluição por chumbo causados por metalurgia durante a Era do Bronze, há uns 4.000 anos.
Mas a nova análise oferece um dos registros em maior resolução dos níveis de chumbo atmosférico até agora, o que, junto com uma análise extensiva de registros históricos, parece contar uma história convincente. Trabalhando na Laser Ice Facility, do Instituto de Mudança Climática, da Universidade do Maine, os pesquisadores usaram espectrometria de massa de alta resolução e técnicas de ablação por laser para medir as concentrações de chumbo na porção superior de um núcleo de gelo de 72 metros de comprimento, extraído da geleira Colle Gnifetti, nos Alpes ítalo-suíços. O núcleo de gelo, cujas camadas preservam um registro ambienta do tempo em que foram embaladas, permitiu aos pesquisadores ver quanto chumbo havia no ar Europeu séculos atrás, a nível de anos individuais.
Sem surpresas, os pesquisadores descobriram que esses níveis subiram continuamente no início dos anos 1800, coincidindo com o início da Revolução Industrial. Antes disso, o chumbo atmosférico variava substancialmente, mas quase nunca caiu para próximo de zero. Exceto por um breve período, depois que a Peste Negra atingiu a Europa. A corroboração com registros históricos indicara uma diminuição dramática nas atividades de mineração no local do núcleo de gelo durante os anos da praga, particularmente na Grã-Bretanha medieval.
Reconstrução das concentrações de chumbo atmosférico tiradas de um núcleo de gelo dos Alpes Suíços nos últimos 2.000 anos. Imagem: More et al. 201
“Nossa perspectiva histórica mostra que sempre fundimos chumbo, e os níveis [no ar] foram elevados”, disse More. “E então vimos, no período em que 50% da população eurasiana morreu por causa de uma pandemia, os níveis de chumbo caírem para zero.”
Essa interpretação sugere que os níveis pré-industriais de chumbo, que são usados como uma linha de base para formar os padrões de qualidade de ar, não são tão livres da influência humana quanto pensávamos. “Presumimos que qualquer coisa antes de 1800 não importe, não havia indústria e nem poluição”, afirmou More. “Isso não é verdade. Temos explorado a natureza e poluído o ar pelos últimos 2.000 anos, com consequências que ainda precisamos descobrir.”
De fato, um grande número de pesquisas mostra que mesmo pequenos níveis de exposição de chumbo no ar, na água ou no solo podem ter impactos prejudiciais em tudo, da fertilidade ao desenvolvimento no início da infância. Os Centros para o Controle de Doenças norte-americanos dizem que nenhum nível de chumbo no sangue é seguro para crianças e que mesmo baixos níveis podem levar a um impacto no QI. Os pesquisadores acreditam que ligar a poluição de chumbo pré-industrial à atividade humana pode reforçar a defesa de padrões ainda mais rigorosos de qualidade de ar.
Mas nem todo mundo está convencido pela interpretação dos autores. Paolo Gabrelli, paleoclimatólogo no Byrd Polar and Climate Research Center, na Universidade Estadual de Ohio, contou ao Gizmodo que achou os resultados interessantes, mas alertou para a necessidade de corroborá-los com dados de outros núcleos de gelo da mesma região.
“Estudos independentes usando diferentes núcleos alpinos precisam ser feitos”, disse Gabrelli. “Aliás, a reprodutibilidade de pequenas características como observadas nos registros de núcleo de gelo (por exemplo, a queda de chumbo causada pela Peste Negra em tornade 1348-1353) não é sempre óbvia mesmo quando as análises são feitas em vários núcleos de gelo extraídos do mesmo local de perfuração.”
“Temos explorado a natureza e poluído o ar pelos últimos 2.000 anos, com consequências que ainda precisamos descobrir.”
Margit Schwikowski, químico do Instituto Paul Scherrer que fez pesquisas sobre outros núcleos de gelo da Colle Gnifetti, contou ao Gizmodo que os resultados não o surpreenderam. “Sabemos sobre emissão de chumbo pré-industriais mesmo durante os tempos gregos e romanos”, disse. Mas ele também achou que a atribuição de um declínio na poluição por chumbo à Peste Negra feita pelo estudo foi “muito especulatva”, devido a incertezas na determinação das datas das camadas do núcleo de gelo. Ainda apontou que o pó mineral pode ter contribuído para alguns dos sinais de chumbo, também.
Outros ficaram entusiasmados com as conclusões do novo estudo. Gonzalo Jimenez Moreno, paleoclimatólogo da Universidade de Granada, achou que a pesquisa se alinha com a compreensão que tem surgido atualmente. “O estudo mostra algo que tem sido observado em outros registros de sedimentos na Europa — o ar está poluído por chumbo há milhares de anos”, contou ao Gizmodo. Celia Sapart, paleoclimatóloga da Université libre des Bruxelles, na Bélgica, disse ao Gizmodo que observou “padrões similares para outros compostos, como o metano”.
“Eles não usaram nossos dados em seu estudo, mas eles definitivamente reforçariam fortemente sua interpretação, e estou até mesmo surpresa com o quão parecidos nossos perfis são”, ela contou ao Gizmodo, fazendo referência a um estudo sobre a poluição histórica por metano que sua equipe de pesquisa publicou em 2012. Sapart elogiou o novo estudo por seu “conjunto de dados de alta qualidade e muito sólido”.
Reconstruir o passado é uma bagunça, e o debate sobre o quanto nossos ancestrais poluíram o ar, e a extensão a que eventos catastróficos como a Peste Negra o limparam, provavelmente vai se encolerizar por anos. Mas uma coisa é certa: precisamos parar de pensar no passado pré-industrial como um período livre de poluição. Os humanos sempre causaram impacto em seu ambiente, e estamos só agora começando a aceitar as consequências.