Alguém pagou mais de R$ 1,3 bilhão em uma pintura possivelmente não autêntica de Da Vinci
Na quarta-feira, recordes de leilão foram estraçalhados quando um comprador anônimo gastou US$ 450,3 milhões (cerca de R$ 1,3 bilhão na cotação atual) para ser o orgulhoso dono de uma pintura “há muito tempo perdida” “feita por” Leonardo da Vinci. Todas essas aspas porque ela pode não ter nem sido pintada por Da Vinci, está em péssimo estado, não é especialmente boa e, no mundo financeiro da arte, nada disso importa.
A casa de leilão Christie’s tem promovido o surgimento do Salvator Mundi (“Salvador do Mundo”) como “a maior e mais inesperada redescoberta artística do século XXI”. Acredita-se ser a única obra de arte de Leonardo da Vinci em posse privada. De acordo com o Artnet, ela foi um dia parte da coleção do Rei Carlos I e, desde então, tem passado por lares menos prestigiosos. Em 1958, ela foi leiloada na Sotheby’s London por 45 libras esterlinas e atribuída a Boltraffio, um pintor que trabalhava no estúdio de Leonardo da Vinci. Ela então foi comprada em um leilão de bens por cerca de US$ 10 mil em 2005. Na última década, pesquisadores e autenticadores têm estudado sua história e a consideraram um autêntico Leonardo da Vinci.
Captura de tela: Christie’s
A oferta inicial foi determinada em US$ 100 milhões, e a Christie’s supostamente teria levantado a bola em alto e bom som para ver se algum colecionador poderia pagar US$ 2 bilhões nela. Se a casa de leilão realmente achou que essa era uma possibilidade, acho que eles ficaram um pouco desapontados com o preço da martelada final. Mas os US$ 450,3 milhões são, de longe, o maior preço já pago por uma pintura em um leilão. O recordista anterior era o quadro Les Femmes d’Alger, de Pablo Picasso, que foi vendido por US$ 179.364.992 em 2015. O jornal The Guardian alega que Salvator Mundi é também a obra de arte mais cara já vendida privadamente, mas esse recorde é muito difícil de se estabelecer definitivamente, já que obras de arte trocam de mãos sem registros públicos o tempo todo.
No entanto, nem todo mundo está certo de que essa pintura recordista foi feita por Leonardo da Vinci. A autenticação é algo subjetivo, e a confiança de um comprador na avaliação de um autenticador é, em grande parte, baseada na reputação daquele autenticador. No caso de Salvator Mundi, a obra estava sendo restaurada por Dianne Dwyer Modestini, uma professora de conservação de pinturas da Universidade de Nova York, em 2007, quando ela começou a ter um pressentimento de que havia algo de diferente nessa peça. Ela foi comissionada para limpar o que pensou ser uma cópia do famoso trabalho de Florença, mas começou a ver detalhes que eram muito “davinciano”. Um raio-X mais tarde revelou traços de mudanças sendo feitas na composição ao longo do tempo. Alguém fazendo uma cópia não faria mudanças tão drásticas. Desde então, muitos estudiosos do mais alto nível concluíram que esse era, de fato, um trabalho de Da Vinci, baseados em vários fatores, incluindo técnica, materiais e dados históricos de fora.
Outros especialistas têm lá suas dúvidas. Charles Hope, professor emérito no Instituto Warburg da Universidade de Londres, escreveu no New York Review of Books: “Mesmo fazendo concessões por seu estado de preservação extremamente ruim, é uma composição curiosamente não impressionante, e é difícil acreditar que Leonardo tenha sido ele mesmo responsável por algo tão enfadonho”.
Maioria dos críticos parece concordar que a pintura está muito abaixo dos padrões típicos de Da Vinci, especialmente considerando que a Salvator Mundi foi datada até 1500. Isso colocaria sua composição diretamente entre A Última Ceia (1498) e a Mona Lisa (1502). Jerry Saltz, crítico de arte da New York Magazine, escreveu:
A pintura está absoluta morta. Sua superfície está morta, envernizada, lúgubre, esfregada e repintada tantas vezes que parece, simultaneamente, velha e nova.
Especialistas estimam que existam apenas 15 a 20 pinturas de Da Vinci existentes. Nenhuma delas retrata uma pessoa diretamente como essa. Também não existe um quadro sequer retratando um Jesus individual. Todas as suas pinturas, mesmo retratos, retratam figuras em poses muito mais complexas. Mesmo a figura que chega remotamente perto dessa pintura, São João Batista, também de 1500, nos dá um homem jovem, se virando, com uma expressão lúbrica, com cabelo completamente diferente e muito mais desenvolvido em termos de pintura do que os poucos cachos sobre os quais a Christie’s está delirando em sua figura.
Escrevendo para o New York Times, o crítico de arte Jason Farago concorda que esse não é o “Mona Lisa homem” que foi falado.
A autenticação é um assunto sério, mas subjetivo. Não sou eu quem vai afirmar ou rejeitar sua atribuição; ele é aceito como um trabalho de Leonardo por muitos estudiosos sérios, embora nem todos. Posso dizer, no entanto, o que senti que estava vendo quando tomei meu turno entre o público que fez fila por uma hora ou mais para contemplar e fotografar infindavelmente “Salvator Mundi”: uma imagem religiosa proficiente, mas não especialmente distinta, da Lombardia da virada do século XVI, que passou por uma série de restaurações.
A maioria das avaliações segue críticas parecidas: a composição está completamente errada; os detalhes não dizem “Da Vinci”; se veio de seu estúdio, foi provavelmente feita por um assistente; e, além de tudo, o negócio é uma sombra do que já foi um dia, porque claramente foi muito repintado. Um especialista brincou durante a exibição: “Por que um Leonardo está em um leilão de arte moderna e contemporânea? Porque 90% dele foram pintados nos últimos 50 anos”.
Então por que esse Leonardo abaixo do nível e possivelmente mal atribuído levantou tanto dinheiro? Porque qualidade e autenticidade não importam tanto assim nas vendas de arte, contanto que alguns “gatekeepers” possam se entender em relação ao valor de um trabalho. Como contou o crítico de arte Blake Gobnik ao Marketplace:
Não estou dizendo que não seja um Leonardo. Também não estou dizendo que é. Só estou dizendo que é um tipo de questão incoerente de se fazer. É meio como perguntar: ‘A lua é judia?’, ‘O sol é gay?’. Imagens, mesmo hoje (ainda mais no século XVI), podem ser todos os tipos de coisa, entre ser feita por um grande mestre a ser feita por uma variedade de assistentes.
A arte traz preços enormes porque carrega bagagem cultural, fica bonita na sua casa, oferece acesso à alta sociedade e, acima de tudo, é um jeito muito conveniente de guardar algum dinheiro. A arte de alto valor é frequentemente usada para lavagem de dinheiro, mas, mesmo em circunstâncias legítimas, é só mais uma forma de diversificar as maneiras como seu dinheiro está sendo guardado, se você for uma pessoa extremamente rica. E, ei, ela sobe de valor com o tempo.
Falando em pessoas extremamente ricas, quem pagou por isso? Não sabemos, e se o comprador não quer dizer, talvez nunca saibamos. Liu Yiqian, bilionário chinês, foi levantado como uma das hipóteses, mas ele disse ao New York Times que não foi ele. Outra possibilidade é Bill Gates. Afinal, ele pagou US$ 30 milhões por diários de Leonardo da Vinci em 1994.
Mas a história dessa obra é essa. Não sabemos com certeza se é autêntica, não sabemos se é boa e não sabemos quem a comprou. Só sabemos que algumas pessoas decidiram que valia uma tonelada de dinheiro. Então, vale.
Imagem do topo: Getty