Texto: Juliana Vaz/Revista Pesquisa Fapesp
Na Nigéria do final dos anos 1980, os leitores de histórias em quadrinhos se depararam com um super-herói diferente. Vestindo um uniforme verde, com o mapa do continente africano estampado na altura do peito, além de uma capa voadora movida a energia solar, o Capitão África era um empresário negro, urbanizado e bem-sucedido, que se transformava em super-herói para cumprir sua nobre missão de lutar contra as forças do mal. A personagem foi criada pelo desenhista ganense Andy Akman em resposta a uma série televisiva norte-americana da década de 1950, As aventuras do Capitão África, protagonizada por um ator branco enviado do outro lado do Atlântico para combater crimes no continente africano. Com seu próprio Capitão África, Akman aproveitava para criticar quadrinhos de teor imperialista como Tarzan e O Fantasma, que narravam peripécias de homens brancos em meio a figurantes negros na selva africana.
Esses e outros casos de intercâmbio cultural entre países do espaço atlântico, situados na África, América e Europa, estão reunidos na plataforma digital Transatlantic cultures, projeto franco-brasileiro de livre acesso desenvolvido pelas Universidade de São Paulo (USP), Universidade Paris-Saclay e Universidade Sorbonne Nouvelle. Os artigos são assinados, em sua maior parte, por autores do Brasil e da França, mas há também colaboradores dos Estados Unidos e de outros países da América Latina e da Europa. Por ora, a África é representada pelo historiador senegalês Moustapha Sall, da Universidade Cheikh Anta Diop, que compôs o comitê editorial do projeto, e africanistas em outros pontos do Atlântico.
O site, disponível para consulta desde o ano passado, contou com financiamento da FAPESP e da Agence Nationale de la Recherche (ANR). Sua meta é tratar da história do espaço atlântico entre o final do século XVIII até os dias atuais por meio de artigos sobre música, cinema, edição, diplomacia, entre outras temáticas. “Queremos ampliar o escopo da história atlântica, que ainda permanece muito ligada ao estudo do período colonial e do Atlântico Norte”, conta a Pesquisa FAPESP Anaïs Fléchet, professora da Université de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines, na França, e uma das idealizadoras da plataforma. “No projeto buscamos entender esse espaço atlântico como um laboratório da globalização cultural que estamos vivendo no mundo de hoje.”
Uma das histórias marcadas pela travessia do “mar de Atlas” é a de Sarah Maldoror (1929-2020), pioneira do cinema africano. A mãe da cineasta era francesa e o pai, de Guadalupe, no Caribe, mas, como informa a plataforma, não é possível precisar a nacionalidade de Maldoror. Sabe-se, contudo, que começou a carreira artística no teatro francês e foi uma das primeiras diretoras de cinema a retratar a luta anticolonial na África. Seu longa-metragem mais conhecido é Sambizanga (1972), inspirado no livro A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), do escritor luso-angolano José Luandino Vieira. O filme de ficção aborda o processo de independência de Angola contra as forças coloniais portuguesas por meio de três linhas narrativas: a tortura e a morte do tratorista Domingos Xavier, acusado de pertencer a um grupo político de oposição ao regime; a busca da mulher, Maria, pelo marido em prisões de Luanda; e a articulação da organização clandestina para tentar resgatar o preso.
“Apesar de não ter nascido na África, Sarah Maldoror é uma figura fundamental para se refletir sobre o cinema daquele continente”, comenta o historiador Eduardo Morettin, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e responsável pelo bloco sobre cinema da plataforma. “Nos filmes, ela costuma conjugar ativismo, protagonismo feminino e rigor estético.” Dos anos 1960 a 2000, a diretora rodou mais de 40 títulos para cinema e televisão, inclusive na América Latina, sendo a maioria documentários de curta-metragem. Um traço marcante em sua obra é a conexão com a literatura. Amiga de intelectuais como Aimé Césaire (1913-2008), Maldoror fez do poeta martinicano e militante da negritude o tema central de alguns de seus filmes, entre os quais o documentário Aimé Césaire, le masque des mots (1987).
Mesmo as trajetórias de personalidades mais conhecidas, como Glauber Rocha (1938-1981), ganham nova luz ao serem analisadas em sua dimensão transatlântica. De trajetória nômade, com passagem por lugares como Cuba, Itália, França e Portugal, o cineasta baiano sempre teve como foco principal a experiência histórica brasileira. Com o passar dos anos sua proposta cinematográfica se expandiu em termos geográficos. “Glauber foi muito impactado pelo pensamento do martinicano Frantz Fanon [1925-1961], um dos intelectuais que nos anos 1950 e 1960 questionaram o processo de colonização”, diz o historiador. “E, graças a essa influência, Glauber passou a pensar o cinema como uma forma de integrar os países em desenvolvimento.” Segundo Morettin, na abertura do filme Terra em transe (1967), o cineasta faz referência à questão afro-atlântica ao mostrar imagens aéreas do oceano embaladas pelos cantos rituais do candomblé. Mais tarde, essa ideia seria materializada de forma mais concreta no longa O leão de sete cabeças (1970), rodado na África, cujo enredo fala de um país em revolução contra a opressão colonial.
Na seção dedicada à música, outro artista baiano se destaca como mediador cultural transatlântico: Gilberto Gil. O artigo escrito por Fléchet sobre o cantor e compositor aponta o exílio em Londres, iniciado em 1969, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), como sua porta de entrada para o Atlântico negro. É na Inglaterra que ele descobre o reggae e se interessa por ritmos afro-brasileiros. Ao retornar para Salvador, em 1972, o músico se aproximaria de blocos do Carnaval baiano, como Filhos de Gandhi. “A passagem por Londres foi importante para conectar Gil com a África”, afirma Fléchet. “Ele não se descobre negro na Europa, mas foi lá que começa a prestar atenção na identidade racial. Quando volta ao Brasil, seu olhar sobre o continente africano era outro. A viagem a Lagos [Nigéria], em 1977, foi outra experiência que modificou sua perspectiva a respeito da África.”
A plataforma continua sendo atualizada e até o momento conta com mais de 130 artigos, que podem ser buscados por tema, região ou período histórico. Os textos estão disponíveis em ao menos um dos quatro idiomas: inglês, francês, português e espanhol. Para Gabriela Pellegrino Soares, professora de história latino-americana da USP e uma das coordenadoras do projeto, o formato digital e multilíngue facilita o acesso e encoraja perspectivas descentralizadas. “Cada vez mais a história da modernidade vem sendo analisada como resultado de um processo policêntrico, que não contou apenas com o protagonismo da Europa”, afirma a historiadora.
Projeto
Dicionário de História Cultural Transatlântica, séculos XVIII-XXI (Transcultur@) (nº 15/50187-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Gabriela Pellegrino Soares (USP); Investimento R$ 112.703,30.