Ciência

Por que ainda não há uma vacina contra o câncer?

Nem toda doença pode ser prevenida com imunização; mutação gênica que caracteriza o câncer impede o desenvolvimento de uma vacina
Imagem: Instituto Butantan/Reprodução

Reportagem: Guilherme Castro/Instituto Butantan

Há décadas, o Brasil é referência mundial em vacinação: atualmente, são distribuídas cerca de 300 milhões de doses de 48 tipos de imunobiológicos por ano a brasileiros e brasileiras de todas as idades. Por meio dessa política pública, doenças graves e mortais, como varíola e poliomielite, foram erradicadas ou controladas. Mas nem todo problema de saúde pública pode ser combatido com campanhas de vacinação e disponibilização gratuita de imunizantes à população. Esse é o caso do câncer.

De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo hoje. A nível global, anualmente, uma em cada seis mortes está relacionada à doença. No Brasil, a estimativa é que entre 2023 e 2025 704 mil casos novos de câncer apareçam a cada ano. Entre os 21 tipos de câncer mais incidentes no país, os que mais se destacam são o de pele não melanoma, o de mama e o de próstata, como relata a Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil, do Instituto Nacional de Câncer (INCA).

Após séculos e séculos de estudos dedicados a essa doença, que é uma das principais causas de morte no mundo, por que ainda não temos uma vacina? A resposta é, ao mesmo tempo, complexa e muito simples: não há como prevenir o câncer com imunizantes. Alguns tipos de câncer, como o de colo de útero e o de fígado, podem ser causados por doenças preveníveis por vacina – HPV e hepatite, respectivamente. Por isso, a imunização é a melhor forma de se proteger desses tipos de tumor especificamente.

Fora esses casos, no entanto, a origem de um câncer pode ser muito diversa, variando de paciente para paciente e sendo por vezes impossível de determinar antes de sua manifestação. Além disso, o desenvolvimento do câncer no organismo humano leva a mutações genéticas difíceis de prever – vale lembrar que a estabilização de um vírus ou bactéria é imprescindível para o desenvolvimento de uma vacina contra a doença causada por ele.

O que diferencia o câncer das doenças preveníveis por vacinas?

Cada célula do corpo humano possui uma regulação própria, ou seja, uma “receita de bolo” que diz quando ela tem que se dividir, quando tem que expressar um gene e quando tem que morrer, por exemplo. Se essa célula perder essa regulação, ela se transforma em um tumor que começa a se dividir sem programação nenhuma.

Esse tumor não é um órgão, mas uma divisão desenfreada de células que podem ser benignas ou malignas. O tumor benigno não vai causar nenhum dano, só ocupar certo espaço do organismo. Já o maligno forma células que, além de crescerem desordenadamente, puxam sangue e criam novos vasos sanguíneos que podem se espalhar pelo resto do corpo, gerando novos tumores.

“O câncer surge de processos internos do corpo, processos esses que podem ser acionados por vírus e outros microrganismos, mas principalmente por substâncias químicas ou pela própria genética da pessoa”, explica a pesquisadora científica e diretora do Laboratório de Biotecnologia Viral do Butantan, Soraia Attie Calil Jorge. Genes como o BRCA, por exemplo, são marcadores hereditários de câncer e aumentam as chances de desenvolver tipos específicos da doença.

O processo vacinal funciona em outra lógica. Seu propósito é apresentar ao corpo o microrganismo causador de uma determinada doença em uma versão não nociva, como um vírus atenuado ou inativado, para gerar resposta imunológica. O organismo identifica o agente externo e cria anticorpos para combatê-lo. A receita para produzir esses anticorpos ficará guardada em cada célula para proteger o corpo quando, e se, o vírus real dessa mesma doença aparecer.

No caso do câncer, o ataque vem de dentro e não é identificado como um inimigo do organismo. O corpo não reconhece as células cancerígenas como um antígeno externo que deve ser combatido, e por isso não gera anticorpos contra elas. Ou seja, a ideia de ensinar as células a se defenderem de uma ameaça desconhecida, base da vacinação, não se aplica: no câncer a ameaça vem de dentro das próprias células.

Apesar de não ser possível fazer uma vacina contra o câncer, outras formas de prevenção continuam valendo: fazer exercícios físicos regularmente, manter uma alimentação saudável e realizar exames de rotina pelo menos uma vez ao ano, já que a rapidez no diagnóstico é aliada do tratamento e evita a metástase (generalização dos tumores pelo corpo).

Se não há vacina, o que se pode fazer?

Embora não existam vacinas contra o câncer, as pesquisas sobre tratamentos avançam a cada dia. A tecnologia de RNA mensageiro, imprescindível para o desenvolvimento de vacinas contra o SARS-CoV-2, por exemplo, surgiu de estudos sobre câncer.

Atualmente, o tratamento padrão de câncer envolve quimioterapia, radioterapia e cirurgias. Na quimioterapia, há a utilização de medicamentos que se misturam ao sangue e se espalham pelo corpo inteiro, destruindo ou impedindo a multiplicação das células cancerígenas. Na radioterapia, o tratamento é feito por meio de raios ionizantes (como um raio-x), uma forma de energia indolor que é direcionada à região do câncer para matar ou desacelerar a doença. A cirurgia oncológica está normalmente associada aos dois tipos de tratamento e pode ter propósito curativo, que elimina definitivamente o tumor via remoção, ou paliativo, para reduzir a incidência de células defeituosas.

Também estão em estudo métodos que buscam eliminar a doença individualmente, como terapias gênicas que utilizam células T modificadas do próprio paciente para afetar alvos direcionados, chamadas CAR-T.

“A ideia do uso das células CAR-T no tratamento contra o câncer é pegar a célula de uma pessoa, manipulá-la e devolvê-la para o organismo, agora não mais cancerosa. Daí a importância de métodos individualizados, que vão perceber em cada pessoa o tipo do câncer, qual gene necessita e quais células podem ser manipuladas”, relata Soraia.

Outro exemplo de terapia gênica em desenvolvimento é a inativação ou estimulação de genes, como o p53, que induz a apoptose – um tipo de suicídio celular. O organismo percebe que há alguma coisa errada, ativa o gene e a célula que viria a desenvolver o câncer se suicida, eliminando a doença do corpo. Como a maioria dos cânceres atacam sumariamente genes como o p53, o propósito da terapia gênica é levar a molécula até o tumor, para que as células potencialmente cancerígenas possam se suicidar sem afetar as saudáveis.

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