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Saiba em três pontos por que o Brasil nega asilo a Snowden

A combinação entre o nosso desdém pela privacidade e o Velho Oeste da diplomacia mundial explica por que Snowden não vai morar no Rio

Existe um lugar em que reina a desconfiança, a lei do mais forte e onde os fracos não têm vez. É um ambiente selvagem, em que as respostas são sempre sim ou não – mas você só pode confiar, mesmo, quando a resposta é não. Esse lugar, amigo, é o mundo.

Veja a cobertura completa do Gizmodo do caso Snowden

Sem governo central e, logo, sem polícia, as relações entre os países são regidas pela desconfiança, pela cautela e pela lei do quem pode mais tem mais – quem pode menos, se vira. E não sou eu que estou dizendo. Isso é o que prega toda a teoria das relações internacionais até agora, como você pode conferir neste belo texto da Foreign Policy, uma das principais referências neste mundo #vidaloka.

E ai você se pergunta? O que raios isso está fazendo no Gizmodo? Porque isso tem tudo a ver com o Edward Snowden, o ex-espião que revelou o esquema de bisbilhotagem dos EUA, e o pedido de asilo que ele fez ao Brasil. Explicamos em três pontos. Poderiam existir 300 pontos? Sim, já que diplomacia é uma caixinha de surpresas. Mas esses três ajudam a entender o tamanho da encrenca.

Não existe moral

Era uma vez um presidente americano chamado Woodrow Wilson. Ele governou os EUA durante a Primeira Guerra Mundial, um confronto tão sangrento que deixou cicatrizes na Europa até hoje, como mostram essas fotos. Quando ele testemunhou o caos em que o mundo se meteu no conflito, decidiu que era preciso ter uma ordem internacional justa, com uma organização central, que permitisse mediar os conflitos até extingui-los de vez. Surgiu dali a Liga das Nações, um rascunho da atual ONU.

O presidente Wilson queria evitar que tragédias, como as da Primeira Guerra Mundial, se repetissem (Divulgação: Memorial de Guerra da Austrália)

O objetivo de Wilson era garantir que os países trabalhassem em cooperação, seguindo uma base moral comum, interligados por uma autoridade central. Não deu certo simplesmente porque os Estados não têm uma moral comum, são muito diferentes entre si e não estão nem um pouco dispostos a abrir mão dos seus próprios interesses em nome de alguma coisa abstrata como a paz universal. Até os EUA acabaram se negando a entrar na Liga. O Congresso não viu muito sentido naquilo e, mais tarde, se provou certo: a Liga foi incapaz de barrar os movimentos que deram origem à Segunda Guerra.

Hoje, a ONU até tenta, mas ela não pode simplesmente chegar ao Brasil e dizer “olha, para agora senão a gente vai te punir”. A ONU só tem poder se os grandes países do mundo derem respaldo para ela. Senão, fica tudo num relatório de 200 páginas sem poder prático nenhum…

O Brasil agradeceu a Snowden por ele ter revelado o esquema de espionagem, mas, assim como outros países, não se vê com uma dívida de gratidão com ele. Infelizmente, gratidão não é uma palavra muito comum em ambientes selvagens… cada um só olha para si.

A busca do próprio interesse

Henry Kissinger mandou e desmandou na política externa dos EUA ao longo dos anos 1970. Se Wilson era um idealista, Kissinger era o extremo oposto: um realista até as últimas células da medula. A China é um país bobo, feio, chato? Uma ditadura sanguinária? Muito americanos achavam que sim, mas, para Kissinger, era melhor ser amigo do que inimigo dela – especialmente porque ser amigo da China significava enfraquecer a União Soviética lá daquele lado do mundo. Era um aliado grande e importante a mais contra um inimigo enorme, gigantesco. E ai, amigos, não tinha essa de comunismo, capitalismo, groucho-marxismo. Era pragmatismo na veia. Era bom ter um amigo grande contra um inimigo maior ainda.

Henry Kissinger foi à China e fez novos amigos, como o líder comunista Mao Tsé-Tung (Foto: Arquivo de Gerald Ford, ex-presidente dos EUA)

Durante um governo republicano, a encarnação da direita, os EUA fizeram acordos de paz com a China comunista. Foi uma surpresa para o mundo. Isso significava que eram republicanos esquerdistas? Claro que não. Na América Latina, Kissinger apoiou todas as ditaduras anticomunistas porque, nesta parte do planeta, os comunistas e socialistas eram um problema para os EUA. Era melhor ter governos alinhados aos EUA do que governos que importunassem o país do lado de baixo do Equador. Num lado do mundo, alguns comunistas eram amigos. Em outro, inimigos.

Outro realista era Joseph Stalin, o sanguinária ditador da União Soviética. Clement Attlee, primeiro-ministro britânico após a Segunda Guerra, costumava dizer que com Stálin era só sim ou não – mas só era possível confiar plenamente nele quando a resposta era não. Alguns líderes soviéticos, como Trotsky,  defendiam que a revolução deveria se espalhar pela Europa. Seria um dever dos comunistas russos diante dos operários de outros países. Stálin achava isso uma bobagem: para ele, o negócio era manter a ordem dentro de casa.

E é assim que as relações internacionais caminham. O governo brasileiro, a diplomacia brasileira, só tem compromisso com o interesse do Brasil – por mais que a gente se sinta mal com isso. É pragmatismo puro. Snowden pode criar problemas para o Brasil? Os EUA podem criar problemas para a gente por abrigar o cara que expôs a falta de compromisso dos EUA com a privacidade? Se o risco é maior que o benefício, não, o Brasil não vai dar asilo a Snowden – nem vai dizer se recebeu ou não o pedido de asilo. O Brasil não ganha nada, na prática, com o asilo. É duro, mas é a realidade. Vai saber quando, num determinado momento, você vai precisar muito de uma ajudinha americana…

Soft power

Um dos principais professores de Harvard e um dos mais respeitados intelectuais dos EUA, Joseph Nye defende uma tese bastante interessante. Ele advoga que o poder de um país não se mede apenas com o estoque de armas ou de dinheiro. Nye afirma que existe um negócio chamado soft power. Ou, em português castiço: influência. Um país pode ter muito poder pela sua capacidade de influenciar a população de outros lugares e despertar simpatia para si. É muito difícil atacar ou sacanear um lugar muito querido.

Obama e Dalai Lama: o presidente dos EUA, às vezes, precisa se encontrar com quem é muito amado pelos seus eleitores (foto: retrato oficial da Casa Branca)

O Brasil tem muito soft power para queimar, especialmente por causa daqueles clichês que nós adoramos detestar e que os gringos adoram amar. Futebol, samba, diversão, praia são tão relevantes para a proteção do Brasil quanto o Exército nas fronteiras. Como é que os EUA justificariam, por exemplo, um ataque a um país tão legal? Outro país que tem um imenso soft power é o Tibete, por causa do Dalai Lama – e do Richard Gere. Que outro país pequenino consegue fazer tanto barulho senão esse, com seus monges bacanas, simpáticos?

Países legais tendem a atrair muita simpatia. É difícil atacá-los (no caso do Brasil) ou deixar de defendê-los (no caso do Tibete) porque isso teria um custo político, interno, muito difícil. E políticos se preocupam não só com o país, mas muito, mesmo, com a própria reeleição.

Várias pessoas defenderam que o Brasil deveria dar asilo a Snowden em nome do soft power, para reforçar sua imagem de país aberto, moderno, livre. O problema é que o caso Snowden, até agora, não tem despertado muitas emoções mundo afora.

Nós estamos abrindo mão da nossa privacidade como se não houvesse amanhã para ter serviços digitais melhores e mais baratos. Nós pagamos nossa conta no Gmail ou no Facebook com a nossa privacidade. Nós damos os nossos dados, e os gigantes de internet ganham dinheiro nos mostrando anúncios. Privacidade, até agora, comove pouquíssima gente. Provavelmente haveria mais gente protestando na rua se o Facebook decidisse cobrar assinatura mensal do que se o Brasil dissesse claramente que, não, Snowden não vai se asilar no Rio de Janeiro.

Conclusão: e agora?

No final do ano passado, fiz um perfil de Snowden e consegui o primeiro depoimento dado por ele a um veículo do hemisfério sul do mundo. Fiquei impressionado com a abnegação do americano, com a coragem, com a disposição em fazer a diferença no planeta. O cara trocou uma vida mansa no Havaí pelo inverno russo e pelo ódio dos EUA.

Eu adoraria que o Brasil desse asilo a ele. Mas, infelizmente para Snowden, o mundo das relações internacionais ainda não tem idealistas poderosos como Woodrow Wilson foi um dia. O planeta continua sendo um lugar selvagem, uma versão ampliada do Velho Oeste. Cada país até disfarça que se importa com o outro. Os governos podem defender valores e, às vezes, na busca do próprio interesse, acabam fazendo algumas coisas boas. Com um comércio cada vez maior entre os países, com mais viagens, está cada vez mais difícil fazer bobagem e declarar guerra ao colega de fronteira. Estamos cada mais interdependentes.

Porém, algumas coisas demoram a mudar. E uma delas é que o mundo continua, na prática, uma anarquia muito louca em que cada país age por si, com medo do outro, tomando muito cuidado antes de dar um passo em falso. Até os caras mais malucos, como o ditador da Coréia do Norte, se tornaram mais cautelosos com o tempo. Ele pode até falar alto, mas não vai bombardear a Coréia do Sul se não tiver certeza que isso vai ser tranquilo…

Até Kim Jong Un, o ditador muito louco da Coreia do Norte, precisa de um carisma pop a la Dennis Rodman neste século. Afinal, não são só as bombas que protegem um país… (Foto: Divulgação do governo da Coreia do Norte)

As dificuldades de Snowden, portanto, contam duas histórias. Uma é velha, e tem relação com a forma como o mundo se organiza. A segunda é nova. Nós, infelizmente, não damos tanto valor para a nossa privacidade a ponto de fazer uma campanha gigantesca por ela – seja no Brasil, nos EUA, na China ou no Tibete.

Só um país como a Rússia, disposta a dar provas de que é poderosa, pode abrigar Snowden nesse momento. A Rússia não abriga Snowden por idealismo, mas por desforra. Para provar que, sim, é um país grande e forte de novo. Mas isso é conversa para outro post…

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