Reportagem: Guilherme Castro/Instituto Butantan
O Laboratório de Coleções Zoológicas do Instituto Butantan, órgão ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, iniciou um projeto voltado para o restauro e modernização do acervo herpetológico da instituição, que foi danificado em mais de 80% por um incêndio em maio de 2010. Batizado de Projeto ReCoBra – Recuperação das Coleções Herpetológicas Brasileiras, o programa pretende coletar, tomografar, sequenciar e repatriar digitalmente espécimes de serpentes de toda a América do Sul.
Iniciado em 2023, o projeto de pesquisa terá duração de cinco anos e é apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelos setores de Estratégia Institucional e Tecnologia da Informação do Instituto Butantan. Entre seus objetivos estão sequenciar o genoma completo de 45 espécies de jararacas (dos gêneros Bothrops e Bothrocophias), que serão coletadas em 44 localidades de 8 países, sequenciar glândulas de veneno das serpentes estudadas e gerar imagens 3D do material restaurado que sobreviveu ao incêndio. Uma rede nacional e internacional de pesquisadores foi criada para a tarefa – o trabalho conjunto vai dar origem a uma plataforma online e de livre acesso, integrando bancos de dados de diversas coleções herpetológicas.
De acordo com o curador da Coleção Herpetológica Alphonse Richard Hoge do Butantan, Felipe Grazziotin, “a ideia é possibilitar o acesso à informação desses exemplares através da tomografia computadorizada e da museômica”. Para ele, o maior desafio é reaver o material danificado, já que as moléculas se degradam com o calor e isso torna o sequenciamento mais difícil.
Museômica e avanços tecnológicos
A museômica, estudo de dados genômicos obtidos de DNA histórico (hDNA), assim como a tomografia computadorizada, devem facilitar o acesso aos exemplares danificados. Além da microtomografia, também serão utilizadas plataformas de sequenciamento e servidores em clusters — redes de supercomputadores com capacidade para processar grandes volumes de dados em alta velocidade.
O laboratório especializado em análise de DNA histórico do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), que já realiza trabalhos de referência na área, é um dos parceiros da iniciativa. Segundo Felipe Grazziotin, o plano é utilizar o conhecimento já aplicado em materiais biológicos antigos nos materiais biológicos que foram comprometidos pelo incêndio.
Os pesquisadores envolvidos no projeto irão utilizar uma sala especial do laboratório para extrair e processar o material avariado sem que haja contaminação. O sequenciamento das informações, por outro lado, será feito no Instituto Butantan.
Dessa forma, combinando informações genéticas e de tomografia computadorizada, será possível qualificar o acesso aos espécimes-tipo (exemplar original utilizado para descrever uma espécie) danificados da coleção herpetológica. A reconstrução digital do que foi perdido vai ajudar todas as pesquisas que necessitem acessar o acervo de serpentes do Butantan, que era o maior do mundo antes do incêndio.
Por que restaurar e universalizar o acesso à coleção científica do Butantan?
As coleções científicas têm como propósito dar subsídio e suporte para pesquisas e fomentar a ciência. Elas servem para registrar o material utilizado em uma pesquisa científica e proporcionar exemplares de estudo. Diferente de uma coleção artística, por exemplo, os itens que geralmente compõem coleções científicas são organismos vivos e seus derivados, materiais que se deterioram muito facilmente após a utilização.
Para Felipe, a restauração da Coleção Herpetológica representa uma responsabilidade da instituição perante a sociedade. As informações contidas nas coleções do Instituto Butantan são um patrimônio da humanidade, e assegurar que esses dados sejam disponibilizados de forma fácil e segura para todos auxilia no trabalho de inúmeros pesquisadores ao redor do mundo.
“Queremos disponibilizar o acesso em uma plataforma própria do Instituto, que acabaria funcionando como um hub de informações sobre serpentes. As tomografias e os sequenciamentos vão estar disponíveis na plataforma do projeto ReCoBra para quem quiser trabalhar com esses dados”, explica o curador da coleção.
Através da implementação da plataforma online, o projeto contará com um banco de dados relacionais, em que o catálogo da coleção herpetológica se comunicará com um mapa interativo, com fotos, microtomografias e dados ômicos — informações úteis para a compreensão de diferentes moléculas biológicas.
“A criação da plataforma digital é importante para que qualquer tipo de pesquisador, principalmente aqueles sem muitas condições de viajar pelo país e para fora, consiga ter acesso à informação com qualidade. Além disso, a repatriação digital ajuda a ter acesso ao material de espécies-tipo brasileiras que estão depositadas em instituições internacionais”, relata Grazziotin.
Além de abarcar os exemplares afetados pelo incêndio, a pesquisa realizada pelo projeto ReCoBra também irá esmiuçar os padrões e processos formadores da biodiversidade e a evolução genética e fenotípica de serpentes neotropicais das áreas estudadas. Para isso, novas serpentes serão incorporadas ao acervo da coleção.
A busca por serpentes pela América Latina já começou, com expedições acontecendo no Brasil, Equador, Colômbia e Peru. Nessas viagens os pesquisadores se aventuram in loco atrás dos animais. As expedições podem durar dias ou semanas, e dependem do país ou da localidade que está sendo estudada.
Além de pesquisadores do Butantan, participam do projeto cientistas de instituições de vários estados do Brasil e de outros países, como Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.