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​​Quando a tragédia vira tédio, todo mundo está errado

Discutir se parar o campeonato está certo ou ficar horrorizado com o fato de um jogador colocar a camisa de outro clube mostra que o tsunami do Guaíba virou notícia de ontem -- e isso é revelador
Imagem: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

De acordo com os trending topics do Twitter, o Brasil acordou na segunda-feira (20) falando de esporte, mas de um esporte que não acontece no Brasil ou que não se joga em campo. Enquanto alguns discutem se o Campeonato Brasileiro deveria ter sido parado ou não, uma comparação com as últimas quatro semanas mostra que a preocupação com o Rio Grande do Sul foi levada pela enchente, como tantas outras coisas. O país continua vivendo como se nada estivesse acontecendo, mas deveria.

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Na redação, jornalistas acabam tratando eventos com a urgência que se exige deles. Por mais dramáticos que sejam, com o tempo, eles deixam de ser notícia. Isso ocorre porque a audiência perde o interesse, e o que está na primeira página é o que você quer ler ou algo que supostamente tem importância, como a morte do presidente do Irã. Ser jornalista é estressante. Se você não se estressa e é jornalista, provavelmente está deixando algo de lado para postar imbecilidades em algum lugar.

Quando a notícia passa a ser o fato de um jogador irrelevante como o centroavante do Flamengo colocar uma camisa do Corinthians, a imprensa tem uma grande parcela de culpa. “Gabigol” é um ótimo jogador para o Brasileirão, mas sua carreira internacional tem a irrelevância similar a Caio Ribeiro, Douglas e Vampeta. Houve quem tivesse a insanidade temporária de compará-lo com Zico, mas só reflete a caixa de reverberação da mídia, porque é similar com comparar Cleber Santana com Messi. Gabigol só é notícia porque joga no Flamengo. Se um poste estivesse com a camisa 9, a Enel ou outra distribuidora de energia estaria na primeira página.

Quão egoísta ou insensível é desviar o foco de um drama que muito provavelmente mudará o destino do RS para debater a seriedade de um jogador ser visto com a camisa de outro clube? Você não aguenta mais ouvir falar da enchente? Certamente é porque você não está lá. Em alguns anos, Gabigol vai figurar na vasta seleção de nomes irrelevantes do futebol, mas os gaúchos ainda estarão lidando com a tragédia que não acabou.

Por mais que o futebol faça parte da sua vida (como faz da minha), a bola não pode rolar quando está passando por cima de contagem de mortos. Parar o campeonato não é uma questão do que pode ou não ser feito, mas simplesmente de decência com milhões que estão passando por problemas como comprar água a R$80 o litro (algo que diz muito sobre a natureza “amistosa” do brasileiro). Ir acompanhar a Premier League num domingo sem futebol é compreensível; trocar o foco por conta de tédio, não é.

O Rio Grande não é o único a descobrir que a solidariedade passou a ser uma coisa temporária. Na Ucrânia, há mais de dois anos um país cuja história é rica em tragédias e derramamento de sangue está sob ataque cerrado e na verdade, quase ninguém mais dá a menor bola (inclusive o governo federal, que se levasse a sério a diplomacia “ética” que diz ter, já teria chamado de volta seu embaixador em Moscou). Foco, rezas, vigílias, doações: toda a ajuda acaba quando acompanhar o assunto dá vontade de bocejar.

Em dois anos, o Brasil terá outra eleição, cuja campanha será tão baixa e vil como a anterior. Você pode ter certeza que a atenção dada ao vice campeonato do Arsenal será lembrada pelo eleitor conservador do Rio Grande do Sul, cuja rejeição a Lula é quase patológica. O desdém com uma tragédia que não acabou – só deixou de dar audiência – vai voltar em algum momento para assombrar, e nem o Arsenal nem um Gabigol jogando na Arábia Saudita vão poder te ajudar.

Point Blank

Em 1985, por conta de uma agressão dos torcedores do Liverpool contra os da Juventus na final da Copa dos Campeões, na Bélgica, 39 pessoas morreram e 600 ficaram feridas. Com a desculpa de “o show não pode parar” da Uefa, o jogo aconteceu num estádio onde dezenas haviam morrido. A imprensa francesa criticou duramente Michel Platini, então na Juventus, dizendo que ele havia “dançado sobre cadáveres”.

Um campeonato brasileiro acontecendo enquanto dois estádios submersos são o símbolo de um desastre ecológico-político é algo da mesma natureza.

Você flamenguista irado porque Gabriel Barbosa vestiu a camisa de outro clube e porque eu desanquei ele aqui, acredite: você ainda vai concordar comigo. Seu centroavante saiu do seu clube há meses (ou mais). A coisa só não foi oficializada? Você discorda? Então tente lembrar d a última vez em que uma relação tão desgastada entre clube, torcida e atleta foi superada e ele voltou a brilhar.

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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