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Queda na aplicação da vacina tríplice viral ocorreu em diferentes ritmos de 2006 a 2020

Ela foi maior nos municípios mais pobres e mais intensa durante a crise econômica e o início da pandemia de Covid-19

Queda na aplicação da vacina tríplice viral ocorreu em diferentes ritmos de 2006 a 2020

Imagem: Bernardo Portella / Bio-Manguinhos

Texto: Giselle Soares/Revista Pesquisa Fapesp

Pouco depois de receber em 2016 a certificação internacional de país livre do sarampo, o Brasil voltou a apresentar surtos dessa infecção viral que debilita o sistema imune, em especial das crianças, e pode levar à morte. Foram 9,3 mil casos em 2018, 20 mil em 2019 e 8,1 mil em 2020, números muito mais elevados que os das duas décadas anteriores e semelhantes aos dos anos 1990, segundo dados do Ministério da Saúde. O ressurgimento recente da doença parece ser consequência de um fenômeno que vem se instalando no país há algum tempo e se acelerou nos últimos anos: a queda nas taxas de vacinação infantil (ver Pesquisa FAPESP nºs 270 e 313). Um estudo conduzido por pesquisadores do Brasil e do Reino Unido, publicado no início de agosto na revista PLOS Global Public Health, mapeou a evolução da cobertura da vacina tríplice viral em 5.565 municípios brasileiros – quase a totalidade – e identificou três fases de declínio entre 2006 e 2020, sempre mais intenso nas cidades e regiões mais carentes.

A vacina tríplice viral protege contra as infecções causadas pelos vírus do sarampo, da caxumba e da rubéola. No Brasil, desde 2004, ela é administrada a crianças de até 8 anos em ao menos duas doses, a primeira delas aos 12 meses de vida – são indicadas duas doses de reforço para adultos de até 29 anos e mais uma dos 30 aos 59 anos. Autoridades sanitárias internacionais, como a Organização Pan-americana da Saúde (Opas), recomendam que ao menos 95% da população seja vacinada para evitar a transmissão dessas doenças. Em 2006, praticamente 100% das crianças brasileiras haviam tomado a primeira dose da tríplice viral, mas, desde então, esse número vem caindo.

De modo geral, a aplicação do imunizante diminuiu de 2006 a 2020 ao ritmo médio de 1,22 ponto percentual por ano (ppa), constatou o grupo coordenado pelos epidemiologistas Maurício Lima Barreto, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na Bahia, e Elizabeth Brickley, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, ao analisar os dados oficiais do Programa Nacional de Imunizações (PNI). A queda, no entanto, não foi homogênea. O declínio ocorreu à taxa de 0,78 ppa no período de 2006 a 2013, pré-crise econômica. Esse ritmo subiu para 2,33 ppa durante a recessão econômica e a crise política de 2014 a 2019 e saltou para 9,75 ppa em 2019 e 2020, respectivamente, o anterior ao da pandemia de Covid-19 e o primeiro ano da crise sanitária mundial. Em 2020, apenas 80% das crianças brasileiras com 1 ano de idade receberam a primeira dose da tríplice viral.

Quando agruparam os municípios pelo nível de desenvolvimento socioeconômico, aferido pelo Índice Brasileiro de Privação (IBP), criado pela Fiocruz e pela Universidade de Glasgow, na Escócia, os pesquisadores notaram que nos 2.565 municípios mais carentes, que inicialmente apresentavam as taxas mais elevadas de cobertura vacinal no país, a redução ocorreu de modo mais acelerado: 1,64 ppa de 2006 a 2020. Nos 224 que integravam o grupo menos carente, todos situados nas regiões Sul e Sudeste, a queda ocorreu a uma velocidade 2,7 vezes menor (0,61 ppa) no mesmo período. As cidades mais pobres também enfrentaram um declínio em ritmo bem mais acentuado nos períodos 2006-2013 e 2019-2020. A cobertura do imunizante caiu, respectivamente, 1,59 e 14,1 ppa nos municípios mais carentes. Nos mais ricos, esses números foram 0,68 e 5,31 ppa. Como resultado dos ritmos distintos, o imunizante foi aplicado, em média, a 92% das crianças nas cidades menos carentes em 2020 e a 87% nas mais pobres.

O artigo publicado na PLOS Global Public Health corrobora resultados de outros trabalhos que analisaram a queda de cobertura vacinal no país. Em um estudo publicado em 2020 nos Cadernos de Saúde Pública, o pesquisador Luiz Henrique Arroyo e colaboradores da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) avaliaram a heterogeneidade regional na cobertura de três vacinas (BCG, contra a poliomielite e tríplice viral) no Brasil entre 2006 e 2016. Eles identificaram no Pará, no Maranhão e na Bahia, estados nos quais a proporção de crianças que receberam a vacina tríplice viral diminuiu em um ritmo anual mais rápido do que no restante do Brasil, aglomerados de alto risco para o surgimento de surtos. Em outro trabalho, publicado este ano na Ciência & Saúde Coletiva, a epidemiologista Ana Paula Sayuri Sato, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP em São Paulo e coautora do artigo da PLOS Global Public Health, constatou que a pandemia de Covid-19 intensificou as disparidades em saúde no Brasil, reduzindo ainda mais a cobertura da vacina contra o sarampo nos municípios com maior vulnerabilidade social. A queda foi acentuada nas regiões Norte e Nordeste, que são mais pobres, desiguais e com menor cobertura da Estratégia de Saúde da Família, programa em que equipes multiprofissionais prestam atenção básica à saúde nas comunidades.

São várias as possíveis razões para explicar a queda na cobertura vacinal. Da recusa crescente da vacinação à falta de conhecimento dos riscos associados a doenças que podem ser prevenidas com os imunizantes, além de um esquema de vacinação cada vez mais complexo – o PNI inclui atualmente 17 imunizantes no calendário infantil.

A epidemiologista Júlia Pescarini, outra coautora do artigo, acrescenta mais um fator: o econômico. “A velocidade de queda na cobertura da tríplice viral aumentou em períodos de crise econômica, que coincidem com cortes de investimentos na área da saúde”, afirma Pescarini, pesquisadora da Fiocruz na Bahia e professora na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “Nossos dados vão ao encontro dos de outros estudos que demonstram que a falta de investimento em unidades básicas de saúde ou em campanhas de vacinação pode ter levado à piora de vários outros indicadores de saúde. Além disso, o financiamento do SUS [Sistema Único de Saúde] é tripartite, federal, estadual e municipal. Os municípios mais pobres dependem mais de verbas federais e estaduais do que um município rico”, comenta.

Carla Domingues, socióloga e epidemiologista que coordenou o PNI de 2011 a 2019, levanta outra consequência da recessão econômica. “Uma parcela importante da população está desempregada ou no mercado informal, o que dificulta a ida aos postos de vacinação. Além disso, no governo passado deixou-se de exigir que a caderneta de vacinação dos filhos estivesse em dia para que as famílias mais pobres recebessem auxílio econômico”, acrescenta.

Para o infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o incentivo econômico é algo a ser levado em consideração quando se avaliam estratégias para retomar a cobertura vacinal no Brasil. “Alguns estudos demonstram que uma forma de estimular a vacinação é proporcionar algum tipo de benefício financeiro ou social. Na prática, existe uma forte relação entre queda de cobertura vacinal e renda”, afirma.

Retomar as elevadas coberturas vacinais do passado, no entanto, deve exigir mais do que investimento econômico. “É necessário pensar abordagens que levem em consideração as características de cada localidade e região para formular estratégias de enfrentamento da queda de cobertura. A dinâmica da população que vive na região amazônica não é a mesma da que mora na cidade de São Paulo”, explica Domingues.

Artigos científicos
GODIN, A. et alMunicipality-level measles, mumps, and rubella (MMR) vaccine coverage and deprivation in Brazil: A nationwide ecological study, 2006 to 2020PLOS Global Public Health. 1º ago. 2023.
ARROYO, L. H. et al. Áreas com queda da cobertura vacinal para BCG, poliomielite e tríplice viral no Brasil (2006-2016): Mapas da heterogeneidade regionalCadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 4, p. e00015619. 2020.
SATO, A. P. S. et al. Vacinação do sarampo no Brasil: Onde estivemos e para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, v. 28, n. 2, p. 351-62. fev. 2023.

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