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Riqueza, liberdade e excesso: sinais de que indicam perigo à frente

A história nos mostra que as grandes tragédias são precedidas pelos ápices de criatividade e liberdade - e estamos vivendo um momento assim agora mesmo
Imagem: Peter Glaser/Unsplash/Reprodução

“Futebol não é uma questão de vida ou morte. É muito mais importante que isso.”
Bill Shankly, lendário treinador do Liverpool

O futebol é um reflexo da sociedade, com todos os seus problemas e virtudes. Desde o estilo de jogo até o respeito pelas regras, o futebol evoca uma série de princípios do imaginário coletivo que são inescapáveis. É por isso que não se deve esperar que um Garrincha apareça na Alemanha ou um Cruyff no Flamengo. Historicamente, o futebol espelha a sociedade, seja numa perspectiva local ou global. Isso é preocupante, pois o mundo parece estar seguindo um caminho que, se avaliado historicamente, parece destinado à tragédia. Curiosamente, a quase absoluta liberdade é um dos indicadores de que o ponto crítico está se aproximando.

Retrocedendo 100 anos, o mundo tinha vivenciado sua maior guerra até então, e o período pós-guerra viu uma liberalização quase imediata no Ocidente. O liberalismo econômico imposto pelos Estados Unidos e Inglaterra substituíram a elite monárquica pela oligarquia econômica. A autodeterminação dos povos”, redesenhou os mapas privilegiando os vencedores da guerra e rifando África e Ásia sem oponentes no Oriente. Ao mesmo tempo, surgiam o voto universal, sindicatos defendendo a conquista de direitos trabalhistas, a Escola de Frankfurt, a Bauhaus, a psicanálise de Sigmund Freud e as bolsas de valores gerando enormes somas de dinheiro. O Ocidente acelerou a criação de grana e desigualdade. Para cada Rockfeller, milhões na Alemanha morriam de fome.

O futebol na Europa também viveu uma prosperidade. A reconstrução do continente trouxe imensos novos estádios. No período entre as guerras, mais de 50 estádios foram construídos na Europa, alguns míticos, como San Siro e Vélodrome. Grandes públicos fizeram o esporte virar um grande negócio. Multidões desesperadas para esquecer a guerra viram ideólogos do esporte como Hugo Meisl, Jimmy Hogan, Herbert Chapman e Vittorio Pozzo alguns dos maiores times da história A filosofia por trás do futebol refletia a consciência coletiva, um questionamento de paradigmas, criatividade e liberdade.

Qual o paralelo com a situação atual?

No campo político, a geração de riqueza parecia não ter limites – como hoje. As bolsas de valores multiplicavam o dinheiro em dias, criando os impérios econômicos que substituíram as monarquias. Populistas vendiam suas ideias propondo violência como solução – também como hoje. Uma liberdade sem precedentes serviu como instrumento para grupos que pregavam intolerância racial, política e nacionalista, alimentando-se do ódio e frustração que só cresciam junto com a desigualdade. Lembra de alguma situação recente assim?

Também no futebol, as últimas duas décadas foram um período de imensa liberdade e criatividade, concentração de riqueza e elitização do esporte. Direitos de transmissão e patrocínios explodiram com aumentos entre 500% e 1000%. Novos estádios enxotaram torcedores que tinham passado a vida na arquibancada por turistas milionários. Dentro de campo, ideólogos como Mourinho, Guardiola e Klopp revolucionaram a tática que artistas como Messi, Cristiano Ronaldo, Zidane e Ronaldinho usavam para suas obras-primas. Contudo, tudo está à disposição só para quem pode pagar – como as cleptocracias russas e oligarquias árabes. Para o povo, cada vez menos pão e menos circo.

Hoje você assiste às guerras na sua TV como se fossem um filme de Hollywood, mas elas estão se espalhando como epidemias, da Ucrânia ao Iêmen, e daí muda de canal para ver Man City x Newcastle jogarem com dinheiro gerado em estados ditatoriais que estão no cerne dessas guerras. Tudo se reduziu a uma lógica de videogame, com cada vez mais dinheiro para cada vez menos gente – tudo direto no seu celular, que é o ícone tecnológico do nosso tempo. O rapto do futebol pelas corporações é o espelho da formação de monopólios dos Ubers e Amazons. Esse regime distópico consegue desafiar capitalismo e socialismo, porque não tem a meritocracia do primeiro nem a equidade do segundo. O que poderia ser mais anti-capitalismo do que uma aberração como a Superliga? Temos tempestades à frente. Buckle your seatbelt, Dorothy, because Kansas is going bye bye…

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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