O clube secreto da Segunda Guerra que curava pilotos queimados e revolucionou a cirurgia plástica
Um dos clubes mais exclusivos da Grã Bretanha não é cheio de herdeiros e socialites, mas conta com ex-pilotos e militares como seus principais membros. Ele se chama Guinea Pig Club e o preço de entrada é bem caro.
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Para ser aceito no Guinea Pig Club você precisa ter passado por pelo menos duas cirurgias reconstrutivas no Queen Victoria Cottage Hospital em East Grinstead, no Reino Unido, feitas pelo pioneiro da cirurgia plástica Archibald McIndoe nos anos 1940. Ao final da Segunda Guerra Mundial haviam 649 membros, a maioria da Grã Bretanha, mas também do Canadá, Austrália, Nova Zelândia e República Tcheca.
Antes da Segunda Guerra, queimaduras graves eram raras e geralmente causadas por acidentes em casa. Mas a guerra mudou isso. Voar aviões perigosos como os Spitfires e Hurricanes que eram propensos a acidentes, cheios de combustível altamente inflamável que se espalhava pelo piloto e tripulação, fez com que jovens saudáveis ganhassem com queimaduras horríveis pelo corpo todo.
Técnica rudimentar
McIndoe, um nativo da Nova Zelândia , foi pioneiro de muitos tratamentos e técnicas em uso até hoje para queimaduras graves. Mas ele percebeu que para cuidar do trauma externo, também é necessário cuidar do trauma interno. Foi assim que o Guinea Pig Club nasceu.
A cirurgia plástica à época era bem rudimentar. Até algo simples como o melhor tratamento para curar queimaduras antes da cirurgia reconstrutiva era um caso de tentativa e erro. O conhecimento da época usava uma cobertura química especial, geralmente usada em queimaduras leves. Ela formava uma camada protetora que permitia que a pele regenerasse. Mas se mostrou desastroso para cuidar de queimaduras graves em grandes áreas. O produto ressecava a pele, causando mais cicatrizes, e era incrivelmente doloroso de ser removido. Depois de tentar o produto com pouco sucesso, McIndoe observou que as queimaduras de pacientes que haviam caído na água curavam mais rápido. Então ele começou a usar banhos salinos para as queimaduras para encorajar a cicatrização.
Quando se tratava de reconstruir lábios, narizes e grandes partes da pele no rosto dos pacientes, medidas mais drásticas eram necessárias. Uma grande área de pele emprestada de outra área não queimada, como da coxa, não sobrevivia ao transplante. McIndoe cuidadosamente deixava uma parte da pele costurada de um lado, enrolada em um tubo, a costurando para que não houvesse infecção, e a ligava a uma região do corpo próxima da onde ela ficaria por fim, como o braço. Assim que ela cicatrizava e começava a pegar sangue do braço, ele então a tiraria da coxa e a ligava do braço ao rosto, onde depois de cicatrizada, ele poderia usar para reconstruir as feições. Os pacientes tinham que andar com seus rostos conectados aos seus ombros ou braços por tubos de pele que pareciam pequenas trombas de elefante, mas funcionava. Grandes partes da pele sobreviviam e podiam ser usadas para formar as novas feições.
O membro do clube Bill Foxley passou por 29 operações para reconstruir seu rosto. Quando seu avião caiu ele conseguiu sair sem ferimentos, mas ele voltou para o avião em chamas para tentar salvar o operador de rádio que ainda estava preso. Em seus esforços para tirá-lo do avião, Foxley sofreu queimaduras graves. (O operador de rádio não sobreviveu).
Um olho foi destruído, junto com a pele, músculo e cartilagem do seu rosto até as sobrancelhas; a córnea do outro olho ficou muito cicatrizada. Foxley jamais foi capaz de sorrir de novo por causa dos ferimentos. Mas isso não o impediu de casar com uma das enfermeiras do hospital em 1947, ou de ter uma carreira depois da guerra no Central Electricity Generating Board. Ele ganhou reputação de ser duro com os funcionários quando inspecionava seus trabalhos ao observá-los a centímetros de distância. Eles não percebiam que era apenas por ele não conseguir enxergar o trabalho de outra forma.
Outro paciente, Sandy Saunders, era um piloto de planador. Quando seu avião caiu, ele sofreu queimaduras em 40% do seu corpo. Seu nariz e pálpebras tiveram que ser reconstruídas. A experiência o inspirou a virar médico. Ele passava seus períodos de recuperação observando McIndoe operando outros pacientes, e dissecando sapos se preparando para sua mudança de carreira no pós-guerra.
Além das aparências
Uma das coisas mais impressionantes sobre o Guinea Pig Club era a atitude dos médicos e enfermeiras. Eles não os tratavam como inválidos em recuperação. A equipe se esforçava para criar um ambiente alegre e normal no hospital, e McIndoe deixava passar os flertes muitas vezes inadequados que os solitários jovens usavam nas enfermeiras. Uma enfermeira se lembra de como um paciente com mãos extremamente queimadas, mesmo assim conseguiu a beliscar quando ela se virou. Quando ela ameaçou dar um soco no nariz se ele a beliscasse de novo, ele apenas lembrou que ele não tinha mais um nariz. “Eu posso esperar”, ela respondeu.
Os membros do clube tinham um senso de humor pesado. Quando o clube foi formado, eles escolheram um piloto cujos dedos tinham sido muito queimados como secretário, para que ele não conseguisse anotar as reuniões, e outro piloto com pernas extremamente danificadas como tesoureiro, para que ele não pudesse fugir com o dinheiro do clube.
Eles eram todos muito jovens, geralmente por volta de vinte anos de idade. Alguns tinham tendências suicidas quando chegavam ao hospital. Eles haviam sobrevivido enquanto seus amigos haviam morrido. Eles pensavam que suas vidas tinham acabado.
Então McIndoe trouxe garotas dos cabarés de Londres para visitá-los, para convencê-los que eles ainda podiam falar com garotas bonitas. Ele fazia eles serem convidados para tomar chá nas casas de famílias locais para que se sentissem bem vindos. Ele os deixava usarem seus uniformes no hospital. Ele mantinha muita cerveja por lá, já que o Guinea Pigs era tecnicamente um clube de bebida.
Foi um dos primeiros esforços para focar tanto na recuperação física quanto psicológica dos pacientes. Antes disso, as pessoas com ferimentos desfigurantes ou deficiências geralmente eram escondidos. Ao invés de tratar os pilotos queimados como infelizes jovens que perderam suas vidas normais, McIndoe os apresentou como heróis que deveriam ser louvados por sua coragem. Se uma peça ou filme estava sendo inaugurado na cidade, McIndoe fazia seus pacientes serem chamados como convidados de honra.
E funcionava. Grinstead, a cidade onde ficava o hospital, ficou conhecida como “a cidade que não encara”. Alguns membros do clube casaram com mulheres que conheceram na cidade enquanto estavam na recuperação.
A motivação para reintegrar os membros do Guinea Pig Club na sociedade não era inteiramente altruísta. A Royal Air Force tinha gasto muito tempo e dinheiro treinando os pilotos e estava ansiosa em conseguir qualquer coisa que os fizesse voltar à ativa. Mesmo assim, foi uma grande mudança de atitude por parte dos militares, de acordo com Emily Mayhew, historiador e autor do livro The Reconstruction of Warriors.
Depois da guerra, os ex-pacientes continuaram a se encontrar para reuniões. Foi somente em 2007, quando o membro mais velho tinha 102 e o mais novo 82 que eles decidiram que estavam ficando velhos de mais para ficar viajando para as reuniões. O Guinea Pig Club mostrou muito bem que a chave para a resiliência é um pouco de humor, aceitação social e a certeza de que você não está sozinho.
Mais leituras sobre o assunto (em inglês):
Andrew, D. R. (1994) “The Guinea Pig Club.” Aviation Space and Environmental Medicine 65 (5): 428.
Bishop, Edward. McIndoe’s Army: The Story of the Guinea Pig Club and its Indomitable Members (revised ed.). London: Grub Street, 2004.
Mayhew, Emily R. The Reconstruction of Warriors: Archibald McIndoe, the Royal Air Force and the Guinea Pig Club. London: Greenhill, 2004.
Imagens cortesia do The Guinea Pig Club, via East Grinstead Museum. Usadas com permissão.