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Sentença de Daniel Alves é para se celebrar e lamentar ao mesmo tempo

Celebrar a condenação de um jogador brasileiro tão importante é indispensável, na esteira de tantos #metoos que acontecem todo dia, mas o caso é sinal de que tem algo podre no nosso reino
Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons

E Daniel Alves vai passar um bom tempo na prisão. Para a sociedade, é uma vitória incrível. Toda mulher que já recebeu ao menos uma cantada vulgar de um algum jogador cafajeste deve estar um pouco mais aliviada (isso para não mencionar aquelas que passaram – e passam – por coisas muito piores). Mas é igualmente importante refletir sobre o que isso significa para o nosso símbolo nacional mais genuíno (talvez o único, aliás). O que acontece em um ambiente onde os atletas mais bem pagos do mundo estão cada vez mais aparecendo nas páginas policiais?

Ninguém pode (pelo menos eu não tenho nenhuma prova disso) afirmar que outros jogadores, técnicos e outros profissionais da Seleção sabiam que Daniel Alves – que a justiça espanhola julgou ser um estuprador – agia criminosamente. No entanto, é difícil acreditar que essa informação não circulasse ao menos em segredo. Pegue o seu ambiente de trabalho: é um lugar onde todos cuidam exclusivamente da própria vida? Nunca ninguém veio te contar que a fulana do Financeiro bebeu até cair ou que o sicrano do Marketing dá calote nos colegas toda vez que tem uma conta de restaurante para pagar? Se esse não for o seu caso, suspeito que você trabalhe em alguma empresa na Islândia. No resto, fofoca voa.

Como é que esse patrimônio do brasileiro pode estar tão contaminado a ponto de jogadores carregando esse tipo de má reputação não serem imediatamente excluídos? Naturalmente há uma série de motivos aqui. O primeiro e mais importante é a questão que eu abordei no texto anterior – a liderança. E aí, não só os jogadores, mas todo mundo entre eles e o presidente da federação. Será que a CBF não deveria ter se engajado numa campanha pública contra o assédio? Ou passado uma norma aos jogadores deixando claro que escândalo do tipo era uma vez e nunca mais? O jogador pode ser o cafajeste que quiser na sua vida pessoal – o problema é de quem aceita. Mas assédio, humilhação, estupro e afins são crimes. Dane-se se você concorda ou não.

“Ah, mas daí não vai sobrar ninguém”, pode argumentar o molusco de plantão. Não vai sobrar ninguém? Então a CBF tem que fazer uma seleção sem ninguém, porque quando roda pelo mundo um episódio do gênero (e não falta antecedente, né), a nossa imagem – sim, sua e minha – é de que somos um país de animais. Quase não temos patrimônios. Somos um país que não lê, não estuda, deixa museus queimarem até o chão para economizar meia dúzia de alarmes contra incêndio. A Seleção nos representa e é uma das poucas coisas que nos une de verdade.

A condenação de um jogador que era um ícone do futebol até outro dia é a ponta do iceberg de um ambiente que trata mulheres de uma maneira tão baixa que até você, que é sórdido o suficiente para achar que se uma menina que usa um decote grande e saia justa merece ser estuprada, ia se chocar. No fundo, o que faz jogadores e páginas de polícia estarem ficando cada vez mais próximos é porque esse comportamento não é só aceito. Ele é estimulado. Somos o país do presidente que tinha “aquilo roxo”, e onde calouro de faculdade sacode o pênis para a torcida adversária num jogo estudantil se sentindo o macho-alfa. Somos o país onde uma aluna que foi com uma roupa “tida” como inadequada, por pouco não foi apedrejada NUMA FACULDADE como se faz em sociedades conhecidas por seu apreço aos direitos humanos como a Arábia Saudita, Iêmen, Sudão e pela ONG que é o Estado Islâmico ou ISIS.

Daniel Alves e a mentalidade que o levou a essa tragédia não é a exceção. Ele é a regra. Não, a maioria absoluta dos jogadores de futebol não é de estupradores, mas no vestiário, o colega solteiro que barbariza na balada é motivo de risada, não de vergonha. Essa vibe não descreve o ex-lateral do Barcelona, mas descreve o país no qual aceitamos viver. Depois você não sabe por que existe corrupção, Olimpíada em cidade sem escola, traficante amigo de juiz, igreja que tem jatinho executivo e la nave va…

Point Blank

História verdadeira I Era uma vez o centroavante de um dos times mais populares do país. Como na noite todos os gatos são pardos, num belo dia ele acabou na cama com uma moça que, veio ele a saber com atraso, era a namorada do chefe do tráfico na área, que, por sua vez, disse que iria matá-lo. O pobre craque chorou aos pés do presidente do clube para ser vendido o mais rápido possível (e ele foi). Fim

História verdadeira II Era uma vez um jogador, consagrado, capitão de um grande clube, que tinha um imóvel num lugar afastado para poder ter churrascos onde, digamos, havia uma quantidade grande de barulho durante a noite, várias vezes por semana. Tudo foi como planejado por meses, até que um dos convidados (também funcionário de uma agremiação gloriosa) espancou a prestadora de serviços porque ela só aceitava fazer sexo seguro. A noite teve um desfecho fora do planejado, mas ninguém foi preso nem julgado. Fim.

Como sempre…tenho saudade do Telê Santana. Se lá atrás, Daniel Alves tivesse sido jogador, aluno, amigo, sobrinho de uma pessoa como Telê, tenha CERTEZA que hoje ele teria sido enquadrado, mas MUITO bem enquadrado.

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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