Texto: Felipe Floresti/Revista Pesquisa Fapesp
Com uma altura que pode chegar a quase 80 centímetros e 2 metros de uma ponta da asa a outra, a coruja bufo-real (Bubo bubo) é a maior ave de rapina noturna do mundo e um dos grandes predadores do planeta. Em sua ampla área de distribuição, que inclui quase toda a Europa e a Ásia, ela se alimenta de 552 espécies de vertebrados – em especial, pequenos mamíferos e aves. Seu cardápio é mais variado que o de outros 18 grandes caçadores analisados em um estudo publicado em junho na revista Communications Biology. A diversidade de presas desse corujão, porém, fica ainda muito distante daquela capturada pelo maior predador da atualidade, o Homo sapiens. No mesmo ambiente em que vive o bufo-real, o ser humano preda 3.007 espécies de vertebrados, nem sempre para comer.
Com quase 7,9 bilhões de indivíduos espalhados por todos os continentes e com técnicas de caça e pesca cada vez mais eficientes, a espécie humana produz um impacto direto sobre 14.663 espécies de vertebrados, de acordo com o trabalho, realizado por um grupo internacional de pesquisadores do qual participou o biólogo brasileiro Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro. A variedade de presas do Homo sapiens corresponde a quase um terço das 46.755 espécies de vertebrados catalogadas e avaliadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) – no mundo, são conhecidas cerca de 80 mil espécies de vertebrados, o grupo de animais que inclui os mamíferos, os répteis, os anfíbios, os peixes e as aves. “Esse trabalho é um alerta sobre o nosso papel de enorme predador no planeta”, afirma Galetti. “Várias das espécies que exploramos estão entrando em extinção.”
Para ter uma ideia desse poder predatório, os pesquisadores compararam a diversidade de presas afetadas pelo ser humano por meio da caça, da pesca ou da captura para criação em cativeiro ou venda com a consumida pelos grandes carnívoros na área em que vivem. O Homo sapiens interfere na vida de 3.202 espécies de vertebrados nos mesmos ambientes da África em que os leões caçam 40 delas. Ou de 2.707 naqueles em que as onças-pintadas consomem 9. Nos mares, a atividade pesqueira humana atinge 10.423 espécies, número 113 vezes maior do que as que servem de alimento para o tubarão-branco. André Pinassi Antunes, ecólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) que não participou dessa pesquisa, avalia com cautela as comparações do estudo, que, apesar das limitações, ajuda a vislumbrar o impacto que o ser humano pode causar na natureza. “Metanálises que usam informações de grandes bancos de dados refletem mais o conhecimento da ciência sobre os ecossistemas do que a realidade”, afirma Antunes. “Só para dar um exemplo, a onça-pintada caça muito mais espécies do que as nove citadas no trabalho”, explica o pesquisador do Inpa.
Assim como os outros grandes predadores, o ser humano caça ou pesca principalmente para se alimentar. Das 14.663 espécies de vertebrados explorados pelo Homo sapiens, 55% (8.037) viram comida. Das espécies de peixes marinhos analisadas no estudo, 72% são alimento humano; das espécies de animais terrestres, 39%. Esse, no entanto, não é o único uso. Uma fração importante dos vertebrados é explorada para a produção de roupas, medicamentos ou alimentos para outros animais, além da criação como animal de estimação, entre outras finalidades. Segundo os autores do estudo, em geral, os peixes e os mamíferos são utilizados principalmente como alimento, enquanto as aves, os répteis e os anfíbios são, em sua maioria, destinados ao mercado de animais de estimação. “É cada vez mais comum as pessoas adquirirem pets exóticos, como lêmures, iguanas, cobras e aves. Muitas dessas espécies não são criadas em cativeiro e vêm diretamente da natureza”, conta Galetti.
O estudo identificou também variações no número de espécies exploradas e na diversidade de uso segundo a localização geográfica. Nas regiões equatoriais, onde a biodiversidade é maior, como o Sudeste Asiático, mais espécies são caçadas ou pescadas do que em outras partes do mundo. Os níveis de exploração foram desproporcionalmente mais altos nas bacias oceânicas da Índia e do norte da África e da Eurásia do que no oceano Austral, no leste e sul da América do Norte e nas Américas do Sul e Central. De acordo com os resultados, enquanto a predação é voltada para a alimentação nos países asiáticos, o tráfico de animais é o principal motivo de exploração nos países amazônicos. “Tradicionalmente, as pessoas pensam que é a caça ou a pesca que prejudicam as espécies. Mas, quando vão a uma loja e compram um peixinho para colocar no aquário, também podem, sem saber, estar contribuindo para o declínio de espécies silvestres”, alerta o ecólogo Adriano Chiarello, da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto, que não participou do estudo da Communications Biology.
De acordo com o trabalho, o uso humano coloca sob risco de extinção 5.775 espécies de vertebrados, o equivalente a 39% das 14.663 espécies predadas pelo Homo sapiens. “Várias delas desaparecem por causa do tráfico, principalmente as aves canoras”, diz Galetti. “O ser humano está causando uma defaunação global e substituindo a biomassa de animais silvestres pela de animais domésticos, usados para a alimentação ou a criação como pet. Isso tem consequências enormes para o funcionamento dos ecossistemas.”
Um estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Ciência Weizmann, em Israel, e publicado no início deste ano na revista PNAS dá uma dimensão dessa mudança na distribuição de biomassa no planeta. Somada, a massa de todos os mamíferos terrestres totaliza 1,08 bilhão de toneladas. Desse valor, no entanto, apenas 5,6% (60 milhões de toneladas) correspondem à massa de animais silvestres (terrestres e aquáticos). Por volta de 58% (630 milhões) são animais domesticados ou mantidos em cativeiro, como o gado bovino, e 36% (390 milhões) equivalem à massa total de seres humanos.
Estudos sobre o uso que o ser humano faz das diferentes espécies, segundo os pesquisadores, são importantes para a elaboração de políticas públicas que visem à conservação e ao manejo sustentável da fauna silvestre. Na avaliação deles, olhar para a maneira como os povos originários lidaram ao longo de milênios com algumas espécies de animais pode ajudar a estabelecer formas de exploração não nocivas. “Temos que reduzir o consumo de carne bovina, aprender a manejar os animais silvestres de forma sustentável e repopular as ‘florestas vazias’, senão vamos acabar causando uma extinção em massa”, afirma Galetti.
Um exemplo bem-sucedido de exploração sustentável é o do pirarucu (Arapaima gigas), o maior peixe de escamas de água doce. Há menos de uma década, ele estava na lista de espécies ameaçadas de extinção. Unindo o conhecimento científico com o das comunidades tradicionais, os pesquisadores, em parceria com órgãos governamentais e os moradores da região, conseguiram recuperar a população do pirarucu em algumas áreas da Amazônia. “Mostrou-se que é possível fazer o manejo sustentável da espécie e gerar renda para as comunidades locais”, afirma Galetti.
Artigos científicos
DARIMONT, C. T. et al. Humanity’s diverse predatory niche and its ecological consequences. Communications Biology. 29 jun. 2023.
GREENSPOON, L. et al. The global biomass of wild mammals. PNAS. 27 fev. 2023.