Ser surdo: Como é o mundo de quem não consegue ouvir
A tecnologia torna a vida tão fácil, e avança tão rapidamente, que ás vezes nós esquecemos que toda a tecnologia do mundo não pode mudar a maneira que algumas pessoas percebem o mundo. David Peter explica como o mundo funciona para os surdos.
Aos 21 anos de idade eu sou o funcionário mais novo da 1000memories, a startup onde eu trabalho¹.Eu sou também o primeiro funcionário surdo que eles contratam. Claro tratando-se de uma startup, eu provavelmente sempre serei o primeiro. Para uma startup fazer sucesso, a equipe precisa se comunicar bem. Já que eu não posso ouvir, isso é um grande desafio para meus empregadores.
Além disso, existem certas coisas sobre ser surdo que as pessoas nunca consideraram, ou que subestimaram ou simplesmente estão enganadas a respeito – então eu devo esclarecer o que ser surdo significa. Não entender o que isso significa afeta minha produtividade e minha felicidade pessoal. Atualmente eu sou um programador, então existem alguns exemplos concretos de como ser surdo me afeta tanto profissionalmente quanto pessoalmente.
Solidão
Eu estou na 1000memories já faz quase um ano, e sairei em duas semanas para estudar na Hacker School. Eu ainda me sinto solitário às vezes. Se o seu reflexo é pensar “todo mundo se sente solitário às vezes”, você estaria correto. Mas também estaria subestimando a solidão que nós sentimos.
Surdez significa que eu não consigo entender ninguém. Quando alguém fala no almoço, eu quero saber o que estão dizendo. Eu perco as conversas diárias, o bate-papo, as amizades feitas por proximidade. E o pior é que eu não tenho escolha na questão.
Cinco anos atrás eu recebi um implante coclear: um pequeno aparelho tecnológico implantado em minha cóclea que emite disparos elétricos para me ajudar a ouvir. Eu tive que aprender todos os sons de novo. Eu quase não me qualifiquei para a operação de implante coclear porque, mesmo com 16 anos, eu era considerado velho demais. Ensinar linguagem a uma criança fica exponencialmente mais difícil conforme elas crescem. É a mesma coisa com a audição. Eu ainda não consigo dizer a diferença entre “b” e “g”, entre muitas outras. Pode ser que eu nunca consiga distinguir, mas não posso parar de tentar.
Nos últimos meses eu senti como se fosse a última pessoa a saber das coisas. Eu fico constantemente surpreso quando alguma coisa acontece ou muda. Uma vez, um engenheiro saiu para trabalhar em Seattle na mesma semana que dois outros engenheiros na equipe viajaram para a RailsConf 2012. Eu só descobri que seria o único engenheiro no escritório a semana toda quando todo mundo já havia ido embora.
Parece que uma solução seria só fazer mais perguntas. Eu sabia do engenheiro que iria se apresentar na RailsConf na quarta, mas talvez eu devesse ter perguntado quem mais estava indo e quanto tempo ele ficaria fora? Talvez. Eu preciso começar a fazer essas perguntas quando elas me ocorrerem. É difícil porque eu ainda não conheço essas pessoas muito bem, e nunca aprendi as normas sociais porque nunca as ouvi.
Outra solução é de alguma maneira saber o que todo mundo está fazendo. Os engenheiros usam o Google docs para guardar prioridades e listas de coisas pendentes. Nós começamos a usar o Yammer para manter a equipe informada. Este último não está funcionando muito bem – nós recebemos um e-mail a cada duas semanas mais ou menos de um cofundador lembrando para usar mais o Yammer. Mas a ideia é manter todo mundo informado.
Conversas em grupo
Em um escritório aberto como este, é muito fácil entrar em uma conversa e acrescentar alguma coisa. Mas sem entender o que as pessoas dizem, as chances de fazer isso caem para zero. Isto é especialmente problemático em reuniões da empresa. A única maneira que eu posso participar é com serviços de acesso.
A 1000memories ainda é uma startup, então nós não podemos bancar serviços de acesso em tempo integral. Mas para as nossas reuniões mais importantes, os co-fundadores tem uma despesa considerável para me conseguir transcritores. Com eles, as reuniões ficam um pouco melhores.
Já que nós trabalhamos em um escritório aberto, pessoas da equipe ficam conversando entre si, especialmente no almoço. Eu sempre perco estas conversas, que estão repletas de informações, não importa quão ruim seja a relação entre sinal e ruído. Isto é algo que as pessoas subestimam. Qualquer comentário que fuja do assunto é uma dica de uma vida inteira para descobrir.
Meu melhor amigo, que estava estagiando na Causes, ficava me falando sobre dicas aleatórias que ele aprendeu com outros programadores porque eles sempre estavam conversando sobre novas dicas que eles aprenderam. Foi assim que eu aprendi sobre git log -S.
Se eu já falei sobre este problema para alguém? Se eu já ensinei alguém a se comunicar comigo? Sim para ambos. O resultado é que ninguém usa o método de comunicação depois da empolgação inicial. A desculpa que meus colegas usam para não praticar é “eu preciso praticar”. E então eles continuam falando com você online ao invés de pessoalmente porque é mais fácil e mais familiar. E por que nós somos humanos, na verdade.
Eu deveria ter deixado claro que o sistema de Palavra Complementada (Cued Speech) era importante para mim. Startups têm muita correria e as pessoas têm outras prioridades. E eu suspeito que demorei muito para ensiná-los, porque foi dois meses antes de eu ter que sair. Foi uma lição que aprendi com isso tudo.
Em uma conversa com um co-fundador, eu disse a ele que sentia que não tinha amigos. Eu sentia ciúmes sempre que um colega escolhia falar com outra pessoa e não comigo. Parecia uma namorada falando com outro cara. Quando ele riu e eu fui incapaz de entender o motivo, foi como um soco no estômago, uma piada interna gigante da qual eu não faço parte. Talvez eu devesse pedir para explicar a piada, mesmo que a maior parte da graça se perdesse, porque assim pelo menos eu saberia.
Eu participo menos de conversas do que a pessoa mais calada que eu conheci – não totalmente por escolha. Você nunca deve tentar ficar na média – a menos que você esteja abaixo da média. Isto é um pedido desesperado por normalidade, enquanto tantos outros querem fugir dela.
Amor
Ser surdo é uma droga especialmente quando se trata de romance. Você não pode amar alguém a menos que tenha conversado com a pessoa. Então como se comunicar com eficácia? Tudo que eu tentei pensar é estranho, porque nenhum deles chega perto do normal. As normas sociais são normas porque elas são o que as pessoas esperam.
Eu já falei com pessoas da “maneira normal”. É difícil, passivo de erros, e nós temos que repetir muito. Isso nunca é uma boa receita para o amor. É difícil ter conversas incríveis quando você tem que repetir quase tudo que diz e nunca tem certeza se a outra pessoa entendeu.
Eu poderia tentar me relacionar com uma garota surda. Entretanto, eu não quero que meus filhos tenham mais chances de serem surdos também. Mesmo que eles escutassem, nós precisaríamos garantir que eles seriam criados da maneira correta – quem iria ensiná-los a falar? E eu não me identifico com a cultura surda, que tem orgulho da surdez. Eu aceito a surdez como parte de mim, mas é só isso. Assim como o fato que eu tenho cabelo preto.
Eu poderia tentar um site de relacionamentos online, como o OKCupid. Entretanto, estes são grupos específicos de pessoas. Existe uma audiência específica que vai para cada site, e você ainda precisa aprender habilidades sutis de comunicação que atualmente não tenho.
Eu posso fazer muitas outras coisas (e estou fazendo!) – me exercitar, me vestir melhor, aumentar a exposição. Mas no fim das contas, eu sou surdo. A coisa mais importante é encontrar alguém que se comunique bem comigo.
Entrevistas de emprego
Deixe-me contar uma história recente.
Esta manhã, eu recebi meu quinto ou sétimo e-mail de uma grande empresa em Washington. Da segunda recrutadora tentando esclarecer algumas coisas, e ela me diz que está procurando por um interruptor [sic] para minha entrevista via telefone.
Eu peço para esclarecer este ponto. Como eu sou surdo, ter um interprete em uma entrevista via telefone não seria muito útil já que o interprete estaria em Washington e eu não, certo? Eles iriam contratar um interprete em São Francisco? Como isso iria acontecer?
No e-mail seguinte, a recrutadora me delega para a gerente dela, a terceira recrutadora. No fim do e-mail tem uma mensagem copiada e colada para que eu me certificasse de preencher o formulário necessário para a entrevista. Eu não quero preencher se eles não fornecerem o interprete.
A terceira recrutadora me diz que irá entrar em contato com a minha faculdade solicitando serviços de acesso e que nós iremos usar Live Meeting na entrevista. Ela até mesmo fará um teste comigo.
Infelizmente eu não fazia ideia do que era o Live Meeting. Uma pesquisa rápida no Google me revela que Live Meeting é basicamente Skype, mas não indica como baixar isso.
Eu acabo nunca fazendo a entrevista.
Aplicativos de acessibilidade em entrevistas
Para a maioria de formulários de entrevistas em empresas, eles pedem um número de telefone sem deixar alternativas. Eu coloco uma observação onde posso. Algo como “Como eu sou surdo, eu não posso fazer uma entrevista via telefone, mas você pode me contatar em…” ao final da pergunta “Porque você quer trabalhar para nós?”. Eu nunca recebo resposta desses. Eu não sei se é porque eles nunca olharam minha observação, se eles rejeitaram meu currículo sem dizer nada, ou se eles tentaram ligar no meu telefone (que não recebe ligações).
Da última vez que eu tentei uma vaga, mesmo o Google não forneceu alternativas. Era um formulário beta, apesar de que quando eu enviei um e-mail para a recrutadora responsável pela minha universidade para falar sobre isso, ela foi muito compreensiva e ajudou muito.
O RH está atrasado. Não tem motivo para preferir entrevistas via telefone ao invés de vídeos com typewith.me, Skype ou bate-papo do Gmail. Eu já tentei todos estes, e sempre acontecia de os programadores preferirem conduzir entrevistas dessa maneira.
Apresentações, palestras e tutoriais em vídeo
Quando eu estava tentando aprender Rails, eu logo descobri que grande parte dos tutoriais populares eram apresentações ou vídeos sem legendas – um enorme conhecimento que eu sou incapaz de aproveitar. Mesmo a Khan Academy não tinha legendas até recentemente quando um grupo independente ajudou. Existem tantos vídeos sem legendas porque as minorias não são priorizadas.
Como eu não posso ouvir palestras, eu tenho que me virar com slides. Mas os slides não se aprofundam tanto quanto as palestras, eles são apenas um conhecimento superficial.
No fim das contas, eu aprendi a programar com uma combinação de sorte, de me matricular em aulas formais, estudar em livros, Googlear, descobrir o Stack Overflow e fazer coisas e mais coisas.
Serviços de acesso
Existem três camadas envolvidas na tradução: a pessoa passando a mensagem, o interprete e eu. Eu ouço o que alguém diz através de alguém que provavelmente não sabe programação.
Conforme os assuntos na universidade ficam mais difíceis, os serviços de acesso pioram. Em uma aula de probabilidade um ano atrás, nós aprendemos sobre segunda derivada e função de distribuição de probabilidade gama, e o datilógrafo que minha faculdade contratou para esta aula estava digitando uma transcrição que era indistinguível de um romance escrito por um chimpanzé. Os datilógrafos não precisam aprender os pré-requisitos, nem precisam aprender junto com o estudante. Eles simplesmente digitam o que eles acham que ouviram.
É como brincar de telefone-sem-fio – o exemplo clássico de perda na comunicação. O que significa que nunca é tão bom.
O único serviço de acesso bom eu já tive foi a Palavra Complementada. Em um sentido básico, a Palavra Complementada é um sistema que usa sinais para som. Foi inventado para combater a taxa absurdamente baixa de alfabetização entre os surdos. (O nível médio de leitura de um surdo de 17 ou 18 anos é o quarto ano do ensino fundamental²). Com a Palavra complementada eu vejo exatamente o que a pessoa disse, sem ambiguidade. O erro só surge quando o tradutor entende errado a pessoa. Infelizmente, não me ofereceram Cued Speech devido a uma política que não vale a pena mencionar, e a Palavra complementada não é muito difundida.
Cultura surda
Eu nunca me considerei parte da cultura surda. Suspeito que ela tenha surgido porque nós éramos solitários. É a mesma coisa para qualquer minoria. Só que neste caso, a cultura surda se uniu por uma linguagem em comum que todos podiam entender – a linguagem de sinais. Eu ouvi as histórias. Pessoas surdas entrando na faculdade pela primeira vez. Encontrando outros estudantes surdos. De repente, durante a sua primeira noite sem dormir, eles estão compensando por todas as conversas que nunca tiveram.
Alguns ficam com raiva do mundo das pessoas que escutam. Eles passaram tanto tempo se sentindo deslocados. Sem se sentir amados.
Alguns não acham que a surdez é uma deficiência; é apenas um modo de vida. Afinal de contas, nós podemos fazer qualquer coisa, exceto ouvir. Mas eu não quero fazer parte do mundo dos surdos, que às vezes parece tão enclausurado. Eu quero fazer parte de um mundo maior – e aqui, não ser capaz de ouvir é uma desvantagem significativa.
Amigos
Apesar das barreiras de comunicação constantes, eu tenho me tornado um bom programador durante meu tempo na 1000memories. Eu aprendi a me comunicar com outros, aprendi sobre o mundo real, e como fazer desenvolvimento voltado para comportamento, dominei JavaScript e até enviei um patch para Ruby on Rails. Eles me deram uma chance de me provar como programador – e, nestes últimos meses, um amigo³.
Nove meses se passaram desde o meu começo como um estagiário trapalhão antes que eu admitisse para um co-fundador que eu estava me sentindo sozinho. Isso aconteceu depois de uma noite de boliche, quando um erro no agendamento fez com que a gente esperasse em um beco por uma hora e meia conversando em um ambiente barulhento. Eu fiquei de lado, me sentindo estúpido, vendo meus colegas de trabalho rirem. Eu não queria ver aquilo. Assim que eu cheguei ao meu apartamento, eu desabei e chorei. Em seguida, um pensamento passou pela minha cabeça: Alguém não deveria saber sobre isso? Então eu escrevi um e-mail.
Na manhã seguinte, o co-fundador leu meu e-mail. Ele me convidou para uma conversa no café da manhã. Quando ele me deixou entrar no seu apartamento, eu fiquei surpreso e me senti um pouco culpado quando vi os olhos dele. Claro, seu idota, eu pensei naquele momento, fundadores podem se sentir solitários também.
Nós comemos bagels no sofá. Levou um bom tempo antes de nós começarmos a falar. Eu comecei falando sobre como a minha vida costumava ser três anos atrás, quando eu era uma pessoa completamente diferente. Eu era tão passivo e tímido que não conseguia olhar ninguém nos olhos. Eu culpava tudo. Dependia de todo mundo. Eu estava disposto a viver a minha vida como uma engrenagem em uma máquina industrial. Eu só queria uma vida fácil e morrer de velhice. Até que eu entrei na faculdade.
Na faculdade, eu estava deprimido e entediado. Eu sentia que estava faltando alguma coisa. Então alguém que eu conhecia morreu. E outra pessoa. E eu percebi que não estava faltando nada. Felicidade é só uma palavra. E atualmente, o eu de três anos atrás não seria capaz de reconhecer quem sou.
O co-fundador e eu conversamos sobre o que poderíamos fazer para tornar minha vida no trabalho mais fácil. Parte do meu contrato envolvia uma verba para fonoaudiólogo, algo que eu nunca aproveitei. Eu mencionei ensinar a técnica de Palavra Complementada. Ele mencionou que, no almoço, eu deveria cutucar alguém e perguntar sobre o que estavam conversando. Nós falamos sobre voltar para a faculdade, viver no mundo adulto e encontrar amor.
Eu saí dali sentindo como se pudéssemos ser amigos.
1 Os fundadores da 1000memories me deram permissão para publicar este post, e me ajudaram a revisar o texto.
2 Conforme concluido em um estudo pelo Instituto de Pesquisa Gallaudet. Entretanto, ele foi feito 15 anos atrás. O nível provavelmente subiu desde então, mas não há estudos mais recentes para substituir esta estatística.
3 O período que passei na 1000memories foi o mais feliz da minha vida. O outro fundador começou a me contar o que as pessoas dizem. Eu faço piadas com meus colegas de trabalho. Um colega/amigo também me disse em uma conversa via IM:
Eu não mencionei isso para você?
Droga, eu odeio quando te deixo por fora das coisas.
David Peter é formado em Ciências da Computação no Instituto Rochester de Tecnologia. Ele é um hacker – alguém que faz coisas. Ele trabalhou na 1000memories antes de sair para estudar na Hacker School. Você pode participar da discussão sobre o artigo dele no tópico da Hacker News.
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