O que um surto de tifo na 2ª Guerra Mundial pode nos ensinar sobre parar o coronavírus

Há mais de 70 anos, uma comunidade prisional na Polônia ocupada pelos nazistas se uniu para conter uma epidemia mortal de tifo, em grande parte sem a ajuda de vacinas ou medicamentos eficazes.
Deportações para o Gueto de Varsóvia. Rua Leszno, perto do cruzamento com a Rua Żelazna
Deportações para o Gueto de Varsóvia. Rua Leszno, perto do cruzamento com a Rua Żelazna. Foto: Fair UseWikimedia Commons

Há mais de 70 anos, uma comunidade prisional na Polônia ocupada pelos nazistas se uniu para conter uma epidemia mortal de tifo, em grande parte sem a ajuda de vacinas ou medicamentos eficazes. Em vez disso, de acordo com novas pesquisas publicadas na semana passada, eles provavelmente dependiam de medidas como educação, melhoria do saneamento e até mesmo distanciamento social. Algumas das lições extraídas dessa epidemia podem muito bem se aplicar à nossa atual pandemia, dizem os autores.

O autor do estudo Lewi Stone, matemático da Universidade RMIT em Melbourne, Austrália, vem estudando epidemias passadas e recentes há mais de 30 anos, confiando em modelos matemáticos para traçar como as epidemias se espalham em uma comunidade. Há três anos, ele encontrou relatos de um surto de tifo no Gueto de Varsóvia da Polônia ocupada – o maior dos acampamentos que a Alemanha nazista estabeleceu durante a Segunda Guerra Mundial como forma de segregar a população judaica local e outros grupos, com até 450.000 pessoas vivendo em um espaço precário, com mais de sete pessoas em média por quarto. De acordo com o pesquisador, pouco trabalho havia sido feito por outros para descobrir como foi realmente este surto.

“Comecei a verificar os relatos históricos e fiquei surpreso que isto tivesse sido perdido. Havia uma pequena quantidade de dados, e ao plotá-los, percebi que isto era incrivelmente importante”, disse Stone ao Gizmodo.

As descobertas de sua equipe, publicadas na Science Advances, produziram muitas surpresas.

O tifo epidêmico é uma doença bacteriana conhecida por afligir a humanidade em tempos difíceis. É transmitida por piolhos do corpo que se alimentam do sangue de pessoas infectadas. Quando os piolhos chegam a outro hospedeiro por contato direto ou por meio das roupas, suas fezes contaminadas ou às vezes até mesmo seus corpos mortos entram em contato com o corpo depois de coceiras.

Tanto os piolhos quanto o tifo se espalham mais facilmente durante guerras, períodos de fome ou outras situações em que as pessoas estão compartilhando pequenos espaços e que há pouco cuidado com a saúde, até pelas condições dadas (embora raras hoje em dia, algumas formas de tifo ainda ocasionalmente causam surtos nas prisões, por exemplo). Sem tratamento, a doença que causa sintomas parecidos com o da gripe é rotineiramente fatal, matando até 40% das vítimas.

Tifo havia devastado os moradores do Gueto de Varsóvia já em outubro de 1941, descobriu Stone. Mas então, parecia que a doença apresentava um declínio misterioso logo no final do ano nesta região, pouco antes do inverno, quando os surtos de tifo historicamente pioravam.

Inicialmente, Stone se preocupou com o fato de que os registros de mortes por volta desse período de tempo pudessem estar incompletos, mas acabou encontrando a confirmação do declínio a partir dos relatos diários de um historiador do gueto. As cidades próximas não experimentaram uma queda semelhante no tifo naquele inverno, indicando que algo diferente estava acontecendo em Varsóvia.

Embora uma vacina contra o tifo tenha sido inventada pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial e possa até ter sido contrabandeada para o Gueto de Varsóvia, acredita-se que poucas pessoas tenham tido acesso a ela. E passariam décadas até que antibióticos eficazes para o tifo estivessem amplamente disponíveis. Por isso, o melhor que os registros históricos e a pesquisa de Stone podem dizer é que provavelmente membros da comunidade e médicos tenham utilizado medidas de saúde pública mais antiquadas para deter o surto.

Estas medidas incluíram melhores práticas sanitárias e de higiene por parte dos residentes, reforçadas por palestras educativas que centenas de pessoas podem ter assistido, de acordo com Stone. Houve também relatos de universidades secretas, onde jovens estudantes de medicina receberam treinamento sobre como melhor responder a doenças epidêmicas como o tifo. E provavelmente houve algum distanciamento social, embora não teria sido considerado uma coisa muito nova na época.

“Era um conhecimento comum: ‘não se aproxime de alguém com tifo, porque você não quer ser a próxima pessoa a pegar os piolhos'”, disse Stone.

Essas medidas só atenuaram a devastação causada pelo tifo naquele ano, e os nazistas sabotaram ativamente os esforços para fornecer mais alimentos e outros recursos às pessoas, piorando a mortandade do surto.

O modelo de Stone sugere que cerca de 100.000 pessoas contraíram tifo durante esse tempo, muitas não relatadas, e teve um grande papel nas 80.000 a 100.000 mortes que sua equipe também suspeita que ocorreram em 1941, juntamente com a fome.

Mas eles provavelmente evitaram um surto muito pior, que poderia ter sido duas a três vezes maior, disse Stone. Infelizmente, em 1942, muitos moradores do gueto começaram a ser enviados para os campos de extermínio nazistas que acabaram por matar milhões de pessoas.

O trabalho de Stone começou antes da pandemia de COVID-19, e as duas doenças são diferentes de formas muito importantes (entre outras coisas, o COVID-19 é muito menos fatal do que o tifo, e se espalha pela respiração, não pelos piolhos). Mas ele acha que as descobertas de sua equipe são especialmente oportunas.

“Uma conclusão seria a de que as medidas de saúde pública durante uma epidemia podem ser eficazes – mesmo que você não perceba que elas estão funcionando. Em Varsóvia, a maioria das pessoas estava passando fome e provavelmente não sabia o que estava acontecendo ao seu redor ou que o que eles estavam fazendo estava realmente ajudando”, disse Stone.

Ao estudar a evolução do surto de Varsóvia, Stone também observou o papel que a estigmatização das comunidades minoritárias desempenhou. Os nazistas citaram o tifo como motivo para isolar os moradores judeus em guetos, e os guardas atiraram em pessoas que tentaram fugir, às vezes sob o pretexto de evitar surtos. O COVID-19 afetou de forma semelhante os grupos minoritários nos Estados Unidos desproporcionalmente mais do que outros – situação que se repetiu no Brasil. Além disso, administração Trump tem culpado rotineiramente os estrangeiros pela disseminação do coronavírus e alimentado a xenofobia.

Como o tifo, o COVID-19 tem um talento para explorar as divisões do mundo. Mas isso não precisa ser o fim da história. Os detalhes podem ter sido diferentes durante a Segunda Guerra Mundial, mas os mesmos princípios se aplicam hoje: uma doença propagada pelas pessoas também pode ser detida pelas pessoas, mesmo na ausência de uma cura milagrosa ou vacina.

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