Quando testes ruins de DNA levam a condenações falsas

Se você já assistiu a um seriado de crimes como CSI, você sabe que a evidência de DNA é muitas vezes o eixo que faz um caso. Combine DNA de um suspeito com o DNA encontrado na cena de um crime, e é certo que ele será o culpado. O problema é que nem sempre […]

Se você já assistiu a um seriado de crimes como CSI, você sabe que a evidência de DNA é muitas vezes o eixo que faz um caso. Combine DNA de um suspeito com o DNA encontrado na cena de um crime, e é certo que ele será o culpado. O problema é que nem sempre é tão simples. A maioria das pessoas pensa em teste de DNA como uma técnica monolítica, infalível. Mas há muitos tipos diferentes de testes – e muitas maneiras diferentes de interpretá-los. Às vezes, em algum lugar entre o processo de recolha de provas no local e de processá-las no laboratório, algo dá errado.

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Para Chen Long-Qi, um teste de DNA ruim arruinou sua vida.

Era o início da manhã do dia 25 de maio de 2009, e Chen estava em um armazém em Taiwan que ele havia alugado para trabalhar, bebendo com os amigos. Por volta das três da manhã, duas mulheres se juntaram a eles. De acordo com Chen e seus advogados, Chen saiu pouco depois para pegar sua esposa de trabalho, e, em algum momento entre 4 e 6 horas da manhã, as duas mulheres foram estupradas. Embora as vítimas não tenham acusado Chen de estupro e ninguém tenha colocado Chen na cena quando os ataques aconteceram, ele foi por fim condenado e sentenciado a quatro anos de prisão. Provas de DNA tinham o ligado ao crime.

Cinco anos mais tarde, Chen foi liberado quando um segundo teste de DNA descobriu que ele não  batia com o DNA no final das contas. Nos anos em que viveu como um estuprador condenado, ele perdeu sua esposa, seu negócio e a maior parte de sua vida. Ele se recusou a ir para a prisão, vivendo em vez disso uma vida solitária como fugitivo, tomado pela depressão e vergonha.

Chen foi o que é conhecido como um “correspondência coincidente”. Os investigadores inicialmente testaram 17 marcadores genéticos no cromossoma Y a partir de uma mistura de DNA de diversas pessoas encontrada no local do crime, e o seu DNA bateu. Mas quando eles testaram um maior número de marcadores, o DNA dele não bateu. O DNA de Chen, ficaram sabendo, não era prova de um crime, mas sim a evidência de uma anomalia estatística que raramente é considerada ao avaliar a evidência de DNA: falsos positivos acontecem.

“Toda prova [de DNA] não é a mesma, e isso é muito difícil de explicar para as pessoas”, disse Greg Hampikian, professor da Universidade Boise State e diretor do Projeto Inocência Idaho, que ajudou a libertar Chen. “Até mesmo os especialistas não entendem o tempo todo.”
Assim que os perfis de DNA levaram à sua primeira condenação no tribunal dos Estados Unidos em 1987, isso tem desempenhado um papel cada vez maior na busca por justiça. O banco de dados de DNA do FBI tem crescido, incluindo mais de 12 milhões de perfis, que contribuem para dezenas de milhares de investigações a cada ano. E há uma variedade de diferentes testes realizados no DNA usado como prova criminal, mesmo apenas dentro dos EUA. O padrão máximo de teste de DNA, para o qual a probabilidade de uma correspondência acidental é uma em um bilhão, é o teste autossômico. Mas diferentes testes podem ser mais eficientes, adequados ou, dado cenários diferentes, rentáveis. Que teste os investigadores escolhem – além de como ele é interpretado – pode afetar muito o resultado de um caso.

Então, embora os tribunais raramente sejam céticos em relação a provas de DNA, um número crescente de acadêmicos está pondo em causa como a prova de DNA é tratada em investigações criminais. E histórias como Chen levaram Hampikian e outros a defender um maior escrutínio quando se trata de provas de DNA.

O único fato consistentemente incontestável sobre a prova do DNA é a nossa fé nele: uma pesquisa de 2005 da Gallup constatou que 85% dos americanos consideram prova de DNA como “muito ou totalmente confiável”. Outra série de estudos publicados em 2008 descobriu que os jurados acreditavam que as provas de DNA fossem 95% precisas. Uma pesquisa recente feita na Austrália descobriu que casos de agressão sexual envolvendo provas de DNA foram duas vezes mais prováveis de chegar ao tribunal e 33 vezes mais prováveis de resultar em um veredito de culpado; casos de homicídio foram 14 vezes mais prováveis de chegar a julgamento e 23 vezes mais prováveis de acabar em um veredito de culpado. Cientistas no campo às vezes se referem ao viés para a prova de DNA como o “efeito CSI”.

O DNA pode ser a prova irrefutável de que um crime foi cometido – ou no caso de muitas pessoas libertas graças a testes de DNA, prova de que não foi cometido. Mas no caso de Chen, a evidência de DNA que erroneamente o ligou ao crime foi mais forte do que os testemunhos que sugeriam que ele era inocente.

Para entender como isso aconteceu, é importante entender um pouco mais sobre como, exatamente, laboratórios batem amostras de DNA. Analistas forenses não examinam o genoma inteiro de um suspeito, mas, sim, alguns lugares chave nele onde as populações são tipicamente diversificadas, referidos como “marcadores”. No caso de Chen, o laboratório analisou 17 diferentes marcadores do cromossomo Y. No entanto, esse teste particular de cromossomo Y não é tão específico como o teste mais comum forense de DNA, o de região de repetições consecutivas curtas, ou STR. Ambos os testes olham para o que é conhecido como repetições curtas, localizações genéticas no genoma de uma pessoa que contêm um trecho de DNA que é repetido várias vezes. O número dessas repetições em qualquer localização pode variar muito de pessoa para pessoa. Mas, enquanto o teste de cromossoma Y olha para apenas 17 posições em um cromossoma, o teste marcador 13 olha em 13 locais em vários cromossomas, diminuindo grandemente as probabilidades de uma correspondência acidental. As chances de que quaisquer duas pessoas (exceto gêmeos idênticos) vão corresponder a todos os 13 marcadores em um teste autossômico STR é algo em torno de uma em um bilhão.

De acordo com Hampikian, muitos laboratórios criminais ainda usam o teste que erroneamente condenou Chen, embora tenha dito que alguns laboratórios estão gradualmente gravitando em direção a 23 marcadores por teste do cromossomo Y. Teste que, eventualmente, o liberou.

Em outro caso que ilustra o efeito poderoso de provas de DNA, Hampikian está usando provas de DNA para ajudar a liberar Christopher Tapp, um homem que está na prisão desde 1998 cumprindo uma sentença de 25 anos até perpétua por homicídio, embora seu DNA não corresponda à amostra da cena do crime. Quando a polícia reabriu, em 2015, o assassinato de décadas atrás, o teste de DNA quase prendeu outro homem inocente. A polícia de Idaho Falls checou os registros do Ancestry.com para bater amostras de DNA na cena do crime, chegando a um homem chamado Michael Usry, que combinava 34 de 35 marcadores que pertenciam ao assassino. Como no teste de Chen, que estavam olhando apenas o cromossomo Y, só que desta vez eles examinaram 35 marcadores em vez do padrão de 17 ou 23.

Quando os analistas olham apenas para STRs do cromossomo Y eles estão, essencialmente, olhando para todo o cromossomo Y. O perfil genético do cromossomo Y é chamado de haplótipo, e haplótipos idênticos são passados de pai para filho, de modo que uma população potencialmente contém muitos homens com exatamente o mesmo perfil do cromossomo Y. Se eles tivessem usado um teste mais padrão, Usry provavelmente também teria batido geneticamente por coincidência e poderia ter sido condenado. Em vez disso, a polícia começou a procurar uma correspondência completa entre os seus parentes e acabou recebendo uma amostra do filho de Ursy. Um teste Y-STR padrão teria batido, mas em última análise, o teste de 35 marcadores limpou o nome de seu filho, também. Um teste de DNA errado não significa apenas que a pessoa errada é acusada, mas também impede as vítimas de receber a justiça que merecem.

O caso de Chen destaca outro erro com o qual Hampikian e outros estão cada vez mais preocupados: mistura de DNA.

No caso de Chen, provas de DNA entraram em jogo porque as duas vítimas no caso haviam bebido e foram incapazes de identificar seus agressores. Ambos os amigos de Chen admitiram ter feito sexo com as mulheres, mas alegaram que havia sido consensual. Enquanto isso, a esposa de Chen disse à polícia que seu marido tinha a buscado do trabalho em torno das quatro horas, e um carimbo de seu trabalho confirmou. Um dos amigos de Chen corroborou a afirmação de Chen, de que ele tinha deixado o armazém em torno das 04:00.

Quando os investigadores decidiram que iriam testar o DNA de sêmen na calcinha de uma das vítimas, decidiram executá-lo contra o DNA de todos os três homens que tinham estado no armazém. O DNA na calcinha era uma mistura, o que significa que o DNA de mais de uma pessoa foi misturado, e foi impossível dizer quais trechos de DNA pertenciam a qual pessoa. Mas pelo fato de o DNA de mais de uma pessoa ter sido misturado na amostra, isso significava que havia uma probabilidade maior de que um suspeito iria coincidir com os 17 marcadores testados, porque não havia mais do que uma combinação de marcadores que iria encaixar.

“É como tirar letras de palavra cruzada para o meu nome e seu nome e misturá-las em uma tigela para retirar centenas de nomes”, disse Hampikian. “Isso torna tudo especialmente confuso.”

De acordo com os cálculos feitos mais tarde por Hampikian e sua equipe, houve uma chande de 1 em 741 de que Chen fosse coincidir com o DNA em questão – o que quer dizer que o DNA nas roupas íntimas poderia hipoteticamente coincidir com milhares de pessoas diferentes em uma cidade de 23 milhões de habitantes. O laboratório criminal que fez o teste concluiu que Chen “ou homens que compartilham a mesma linha paterna não podem ser excluídos” como suspeitos. Nesta prova, Chen foi condenado por estupro em 2012. Os outros dois homens também bateram com o DNA e foram condenados.

Chen Long-Qi (segundo da esquerda), juntamente com o diretor da Associação Taiwan para Inocência (extrema esquerda), Greg Hampikian e a esposa de Chen Long-Qi. Crédito: Greg Hampikian

Chen se recusou a ir para a prisão, dizendo aos seus advogados que não iria “entrar voluntariamente na cadeia por um crime que não cometi”. Ele também contatou a Associação de Taiwan para Inocência, que imediatamente começou a trabalhar em um recurso vendo diversas falhas na convicção de Chen. Eles pediram para o DNA ser testado novamente, desta vez usando um teste que analisa 23 marcadores genéticos em vez de 17. Desses seis novos marcadores genéticos incluídos no novo teste, Chen correspondia com apenas quatro. A nova evidência excluiu ele como uma possível fonte de DNA encontrada na amostra mista. Além do mais, todos os marcadores genéticos na amostra puderam ser batidos com os outros dois homens que foram condenados. Com esta prova, o tribunal concedeu um novo julgamento e anulou sua condenação.

Dan Krane, um especialista em provas de DNA da Universidade Estadual Wright, disse ao Gizmodo que, em sua opinião, a evidência de DNA do caso de Chen nunca deveria ter sido utilizada em primeiro lugar, porque era uma mistura de DNA de várias pessoas.

“Não há nenhuma maneira aceita e confiável de anexar um peso estatístico a um teste de DNA YSTR misto”, disse. “Assim que você vê que é misto, você tem que jogar para cima suas mãos e dizer: ‘Bem, isso é muito ruim’. Isso teria resolvido o problema a princípio nesse caso.”

Michael Coble, cientista forense do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, disse ao Gizmodo que uma análise mais aprofundada poderia ter permitido aos cientistas forenses em Taiwan dizer se a mistura DNA parecia ser em grande parte de um suspeito, mas por outro lado existem limites da informação a ser adquirida.

“Muitas vezes qualquer evidência de DNA recebe o selo de aprovação, mas é realmente a interpretação que importa”, ele afirmou.

Em uma pesquisa de 2013, o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, em que Coble trabalha, pediu para 108 laboratórios interpretarem uma amostra de DNA inventada com quatro pessoas nela. Eles também forneceram o perfil de DNA de um suspeito falso que não foi incluído na amostra. Setenta por cento dos laboratórios identificaram o suspeito falso como sendo uma combinação.

Quando o Gizmodo procurou o FBI, a agência disse que, embora se baseie em misturas de DNA como prova, só faz isso se um laboratório de crime puder escolher uma pessoa primária que contribuiu para a amostra (o FBI também confirmou que seus laboratórios ainda usam o teste Y-STR de 17 marcadores utilizado no caso contra Chen). Em um novo estudo de caso sobre a condenação de Chen publicado na revista Forensic Science International: Genetics, Hampikian argumenta que tais provas só deveriam poder ser usadas para excluir suspeitos, não para acusar ou condená-los. Krane disse que esse teste deveria ser jogado fora por completo.

“Perfis de DNA devem ser binários”, disse Krane. “Não deve haver uma área cinzenta.”

Especialmente quando é a vida de alguém na linha.

“Eu acho que há talvez uma centena de especialistas que entendem e milhares de pessoas que não”, disse Krane. “E não [são] os promotores que não querem entender. E eu acho que há uma enorme quantidade de advogados de defesa cujos olhos ficam vidrados quando o DNA é mencionado. É difícil o suficiente ensinar isso em uma sala de aula.” Balística, impressões digitais e análise de incêndio foram todos uma vez considerados evidências científicas sólidas projetadas para extrair o potencial enviesamento humano nas investigações. Hoje, é bem estabelecido que os resultados dessas metodologias nem sempre são sólidos. Na ciência forense, provas de DNA estão gradualmente atraindo mais ceticismo, também para que seu controle garanta as condições sob as quais sejam recolhidas e processadas de maneira impecável. Em um estudo de 2008, pesquisadores escreveram que  “uma aura mística de certeza muitas vezes envolve o valor de provas de DNA”, mas nem todas as evidências de DNA são criadas iguais. Provas de DNA podem ser conclusivas, mas apenas quando as amostras de DNA são testadas corretamente, com o teste apropriado.

Esse poder místico do DNA sobre a imaginação pública, Hampikian disse, deve deixar todos nós muitos desconfortáveis.

Chen, disse Hampikian, é um dos poucos casos que chamou a atenção de especialistas como ele que buscaram corrigir os erros do teste de DNA.

“A maneira como nós confiamos em testes tem de ser reavaliada constantemente”, disse. “Estamos cometendo erros hoje e não vamos saber deles por um longo tempo.”

Imagem do topo: Jim Cooke/Gizmodo

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