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Vamos queimar tudo: um guia para o Neoludismo

Definir o "Neoludismo" é um transtorno enorme. O termo — e ideologia — se sobrepõe e se confunde com diferentes causas e "ismos".

Apesar do que lemos todos os dias no Twitter ou de como usamos o termo em conversas casuais, o ludismo não era apenas uma rejeição passiva da tecnologia ou um movimento que se recusava a aceitar ao mundo moderno. Mesmo resistindo aos seus encantos, os luditas históricos buscavam compreender a tecnologia.

O ludismo é nebuloso por definição: ele só existiu como uma forma de resistência, nomeado em homenagem ao seu líder fictício Ned Ludd, símbolo da oposição às máquinas que ameaçavam o ganha-pão dos trabalhadores durante a revolução industrial. Os luditas originais, pobres coitados e tecnofóbicos primitivos, têm um certo apelo. Mas hoje, a causa se transmutou em um nicho diverso e fragmentado que não resiste apenas à tecnologia, mas também à vigilância estatal, às hierarquias capitalistas e à própria modernidade.

Definir o “Neoludismo” é um transtorno ainda maior. O termo — e ideologia — se sobrepõe e se confunde com diferentes causas e “ismos”: anti-materialismo, minimalismo, anarquismo, eco-terrorismo, anarco-primitivismo e o futurismo distópico.

Este é um guia simplificado das muitas facetas do Neoludismo.

A turma do “espera aí, vamos pensar um pouco nisso”

Essa é uma filosofia razoável: a ideia é se conscientizar e se informar sobre as novas tecnologias antes de abraçá-las. Parar um pouco e se perguntar qual será o impacto delas na sociedade.

Não é de espantar que essa vertente neoludita tenha surgido no começo dos anos 90. Em 1990, o autor e ativista Chellis Glendinning publicou um texto intitulado “Notas rumo a um Manifesto Neoludita” na revista Utne Reader, reapropriando o termo “ludita” para a era moderna e enumerando os princípios do movimento.

Os neoluditas não são “anti-tecnologia”, afirma o autor, mas sim contra qualquer tecnologia materialista ou nociva para a comunidade.

A lista de princípios está permeada com a ideia de que “toda tecnologia tem um viés político”, e deve, portanto, ser questionada. Um dos principais objetivos é “derrubar” as tecnologias nucleares, a televisão e os computadores (“que causam doenças e mortes tanto durante sua produção quanto no uso, aumentam a centralização do poder político e distanciam as pessoas das experiências reais”). Eu presumo que eles desistiram dessa ideia.

A turma do “os robôs estão roubando nossos empregos”

Apesar de certas vertentes do movimento serem contrários ao transhumanismo, a oposição neoludita à tecnologia pode ter uma raiz mais econômica do que espiritual. Um certo receio ronda qualquer tecnologia que possa vir a substituir profissionais humanos — um tema que inspira livros, filmes, TED talks e eternas discussões na mídia.

No último relatório sobre automatização do Centro de Pesquisa Pew, publicado no ano passado, os autores não chegaram a nenhuma conclusão sobre a ascensão de “tiranos robóticos”; em contrapartida, um relatório sobre tecnologias “disruptivas” publicado pela McKinsey no ano anterior explorou “a automatização do conhecimento.”

O relatório levanta questões sobre a disparidade entre produtividade e remuneração, sobre o conceito Keynesiano de “desemprego tecnológico” e sobre a Falácia Ludita— a ideia de que os robôs irão permitir que os humanos se foquem em tarefas mais sofisticadas — e a sua discutível presença na mentalidade atual.

Esse assunto já foi abordado por vários teóricos. Os livros de Jaron Lanier, Who Owns the Future e You Are Not a Gadget, encorajam seus leitores a defender a imaginação humana do maoísmo digital. Primeiro, a tecnologia apaga os limites entre trabalho e tempo livre (quando usamos plataformas sociais como o Instagram e o Facebook, estamos basicamente trabalhando para eles), depois ela domina nosso trabalho, nos transformando em consumidores passivos dependentes de processos automatizados.

De forma semelhante, The Glass Cage, de Nicola Carr, defende que a automatização emburrece o conhecimento: quanto mais automatizados os trabalhos se tornam, mais distantes da realidade ficam os trabalhadores (por exemplo, os pilotos que supervisionam a decolagem e pouso automatizado de aviões, supervisores de fábricas etc).

Carr cita o historiador George Dyson: “E se estivermos pagando por essas máquinas pensantes com pessoas que não pensam mais?”

A turma do “queima tudo”

Diferente da atual fachada intelectual do movimento, os luditas originais são lembrados pela violência de suas ações. Destruir teares pode não ter resolvido muita coisa, mas serviu como um poderoso ato de resistência. Essa parte do legado ludita continua viva em um pequeno nicho de eco-ativistas e grupos anarquistas.

A linha entre os termos “eco-ativista” e “eco-terrorista” é tênue: ambos são usados para descrever grupos como o coletivo ecológico radical italiano Il Silvestre, criado em 1998. Alguns anos atrás a polícia interceptou um carro cheio de explosivos que seguia em direção ao centro de nanotecnologia da IBM, avaliado em US$55 milhões. Em 2012 o coletivo anarquista escreveu uma carta aberta de quatro páginas assumindo a autoria do ataque a Roberto Adinolfi, um executivo do ramo de engenharia nuclear.

No começo dos anos 2000, a entrada do México no ramo da nanotecnologia inspirou a criação de vários coletivos eco-terroristas, incluindo o Individuals Tending Toward the Savage (ITS) e o Obsidian Point Circle of Attack.

A nanotecnologia é uma vertente científica controversa; segundo seus críticos, ela oferece riscos ambientais e biológicos, incluindo um possível cenário “apocalíptico” onde nanopartículas criarão robôs que por sua vez irão se rebelar e dominar o mundo (é sério, as pessoas estão preocupadas com isso).

Em abril e maio de 2011, coletivos anarco-primitivistas, conhecidos localmente como primativistas, assumiram a autoria do ataque a Carlos Alberto Camacho Olguin, chefe de pesquisa em nanotecnologia na Universidade Politécnica do México. O Instituto Monterey de Tecnologia também se tornou um grande alvo. Seu presidente, Armando Herrera Corral, foi atacado com um bomba caseira em 2011; a bomba não explodiu completamente, mas um membro do instituto foi internado com fragmentos de metal no pulmão.

Em um comunicado de 5.500 palavras, o ITS assumiu a autoria do atentado — e ainda por cima citando o manifesto do Unabomber, vulgo Ted Kaczynski:

“A crescente aceleração da Tecnologia irá desencadear na criação de nanociborgues que poderão se auto-replicar automaticamente… A conclusão do avanço tecnológico será patética, a terra e tudo que existe nela se tornará uma grande massa cinza, onde as nanomáquinas reinarão.”

O grupo Obsidian Point Circle of Attack publicou um manifesto parecido no ano passado, assumindo a responsabilidade por uma bomba caseira enviada para o Dr. José Narro Robles:

Nós nos opomos ao progresso do sistema tecno-industrial, seus valores culturais e a sua sociedade escravizada… a estrutura física, o caráter e a mentalidade humana estão sendo manipuladas e dominadas pelas máquinas, nossos instintos mais profundos são domesticados pelas propagandas na televisão, no rádio, na internet, nos jornais, nas escolas, nos empregos e nas universidades. O progresso mata, adoece e deixa tudo artificial e mecânico.

E falando em tecnologia que adoece…

A turma do “a tecnologia está nos deixando doentes”

Green Bank, na Virgínia, é conhecida como a cidade sem Wi-Fi, uma “Área de Quietude Nacional” instituída pelo governo e livre de quaisquer ondas eletromagnéticas; o motivo é a presença de um grande telescópio que precisa de “silêncio atmosférico absoluto” para funcionar.

A cidade se tornou um refúgio para aqueles que sofrem de hipersensibilidade magnética (EHS), uma série de sintomas como náusea, desorientação e dores de cabeça supostamente causadas pela exposição à sinais de telefone e internet. O distúrbio ainda não foi reconhecido pela medicina moderna.

Independente da veracidade das doenças causadas pela tecnologia moderna, o interesse em casas sustentáveis e uma vida sem tecnologia tem aumentado, e um número cada vez maior de pessoas está decidindo viver uma “austeridade voluntária”, também descrita como “uma visão cética da tecnologia e da ciência, que rejeita os aspectos que, no fim das contas, trazem mais prejuízos que benefícios.”

A turma do protesto

Protestos contra políticas locais, gentrificação e custo de vida dominam as ruas de São Francisco; as manifestações tem como alvo gigantes do ramo de tecnologia, mais especificamente Kevin Rose, sócio do Google, criador do Digg e herói entre os fãs de tecnologia.

Favorecendo a manifestação física em detrimento dos protestos digitais, o grupo ativista conhecido como Counterforce tem cercado ônibus fretados por funcionários dessas empresas, quebrado janelas, protestado na frente de casas de executivos do Google e vomitado em ônibus exclusivos para funcionários da Yahoo.

A cidade também foi palco de alguns ataques direcionados a novos tipos de tecnologia, como drones e usuários do Google Glass, o que reflete a preocupação do público com a invasão de privacidade e vigilância estatal.

Mas será que algum desses grupos é realmente “ludita”?

Atualmente, categorizar cada opinião desfavorável sobre a evolução tecnológica é um exercício inútil e totalmente sem propósito. Os neoluditas de hoje em dia enfrentam desafios muito maiores do que teares: a “sociedade tecno-industrial” mencionada no manifesto do Unabomber se tornou uma realidade, e resistir à tecnologia é resistir à própria sociedade.

“Não sei se temos um movimento realmente ludista hoje em dia”, disse o acadêmcio Kirkpatrick Sale em uma entrevista para a Forbes no ano passado.

Sale ganhou visibilidade há quase 20 anos atrás, quando destruiu computadores no palco de várias conferências e fez uma aposta pública com Kevin Kelly, fundador da Wired: em 2020 o mundo enfrentaria “um colapso econômico global, guerras entre ricos e pobres e desastres ambientais significativos.”

“Havia neoluditas nos anos 90 — e eu era um deles — que alertavam o público acerca dos perigos do uso obsessivo de computadores em todas as transações e interações”, disse Sale. “E esse movimento desapareceu quando os computadores se tornaram universais.”

Ele pode estar certo: imaginar a vida sem tecnologia é tão difícil quanto questionar os termos e condições de uso de cada aplicativo, aparelho e rede social que aceitamos sem pestanejar. Enquanto os governos tentarem nos monitorar e censurar através de apps e aparelhos, o aviso ludita vindo do cineasta Godfrey Reggio continuará parecendo bem razoável: “a tecnologia não é neutra”. E disso nós podemos ter certeza.

Ilustração de Tara Jacoby

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