Iniciei o mês incomodado com uma daquelas noticias que nos afetam profundamente.
Hoje nosso papo é sobre a velhice. O texto se baseia nesta manifestação aqui.
A notícia da vez é sobre a possível inclusão da velhice como doença. Sim, a Assembleia
Mundial da Saúde, órgão que prepara e apresenta ações a serem cumpridas pela OMS
(Organização Mundial da Saúde), prevê a inclusão da velhice (código MG2A) como
sintoma ou achado clínico a partir de 01 de janeiro de 2022. Pasmem.
Em primeiro lugar, o envelhecimento da população é um fenômeno mundial. Mais do que
qualquer coisa, trata-se de uma das maiores conquistas sociais! À cada década, por conta
do avanço da ciência e melhorias na qualidade de vida, a média de idade das populações
tendem a aumentar.
Através de experiências profissionais que tive com videogames e diversas gerações,
posso dizer que temos muita sorte de nunca termos nos fechado para nenhum público. Ao
contrário! Sempre achamos que o videogame poderia ser pra todo mundo.
Notem o seguinte. O termo que usei foi “velhice”, e não terceira idade. Há um ponto
fundamental aqui. A velhice não acontece somente em determinada fase de nossas vidas.
Ela começa desde o dia em que chegamos ao mundo! Nasceu, o relógio começa a contar.
O tempo passa, assim como a infância, adolescência e vida adulta.
É por isso que sempre pensamos no videogame como um espaço de todas as gerações.
Não parto do desenvolvimento da indústria de jogos, à qual, quase sempre, parte de
recortes como idade, gênero, localização geográfica, etc. Como de praxe, me refiro à
dimensão sociológica do videogame, na qual compreendemos o fenômeno enquanto
cultura produzida como linguagem e/ou criação intencional.
Quando fomentamos o jogar coletivo, é muito comum encontrarmos pais e mães, filhos e
filhas, avôs e avós; todo mundo jogando junto. O fluxo de jogo existe. No momento em
que jogam, seus sentidos são transportados para o universo do game. Todes dão o seu
melhor, como se estivessem disputando as olimpíadas. Contudo, logo que uma fase do
game termina, o riso toma conta. Se divertem, conversam sobre erros e acertos, trazem
referências da vida.
Quando circulamos com nossos jogos, são frequentes as oportunidades que temos de
conversar com públicos de todas as idades. É comum que crianças, adolescentes e
adultos participem das ações. E a conexão entre as pessoas é o que dá a possibilidade
de todes terem uma experiência mais completa.
Certa vez, estávamos com “A Nova Califórnia” e também com jogos de parceiros em uma
comunidade. No entra e sai de pessoas na sala, uma criança chega acompanhada de sua
avó. A criança senta, começa a jogar. Menos de 30 segundos depois, ela abandona o
computador e sai correndo para outro. Veja bem: pra quem levou quatro anos para
desenvolver um game (nosso caso), essa velocidade de descarte pode ser simplesmente
frustrante. Imagine!
Sim, nós iríamos intervir. Bater um papo com ela, jogar juntes. Mas antes que
pudéssemos pensar, a avó da criança a chama:
– Vem cá, mocinha. Você mal parou pra jogar esse jogo, e já saiu correndo atrás do outro?
Tenha mais paciência!
A avó fez muito mais do que dar uma bronca. Ela sentou ao lado da criança, e ambas
começaram a jogar juntas. Enquanto uma delas lia os diálogos, a outra cuidava de
avançar no game. Coletaram as fofocas da vizinhança. Estranharam o comportamento de
dona Emília, personagem do jogo que quer casar a filha à qualquer custo. Roubaram
ossos. E revezaram. E revezaram mais uma vez. E outra. Ao final, ambas saíram super
contentes pelo jogo em conjunto e, mais ainda, pela possibilidade do encontro.
Pensar em espaços inclusivos também não impede que eventuais ações sejam voltadas
para determinados grupos. Por exemplo, atividades de tecnologia digital realizadas com
foco na terceira idade podem promover acesso através de uma didática mais ajustada às
especificidades, digamos assim. Além disso, tratam-se de espaços que trazem uma
sensação de segurança para pessoas que têm medo de experimentar.
Não se trata apenas de inclusão, e sim de um processo de troca. Ao dispormos as
“novidades tecnológicas” que tanto amamos para pessoas mais velhas, estamos
afirmando que elas são parte fundamental da sociedade. Sua sabedoria e experiência
jamais podem ser deixadas de lado. Dialogar com o velho e o novo não é retrocesso, ao
contrário. Se há algo cringe nisso tudo, é atrelar a velhice à doença!
A compreensão da velhice enquanto doença traz a ratificação do estereótipo do idoso
enquanto pessoa incapaz. Trata-se de um preconceito que vem sendo desconstruído pelo
corpo social. Enquanto espaços culturais vêm trabalhando nas últimas décadas para
valorização das potencialidades humanas, a ação de inclusão da velhice enquanto
enfermidade pode trazer um retrocesso muito significativo para a nossa sociedade.
E você, já convidou pessoas de todas as idades para jogar?
Vejo você no futuro. Abraços!
Referências e indicações
- Manifesto do Serviço Social do Comércio de São Paulo (SESC-SP) com relação à
- inclusão da velhice como doença;
- Movimento “Velhice não é doença”no instagram;
- Se você concorda que velhice não é doença, pode assinar a carta pública/manifesto;
- Sobre coletar fofocas e roubar ossos de defunto, eis o game A Nova Califórnia.
* Jaderson Souza é doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela FFLCH, na USP e Também é mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É presidente da Game e Arte, que desenvolve jogos e facilita processos educacionais por meio deles. As opiniões do autor não necessariamente refletem as do Bitniks.