Muitos fizeram barulho no rock, poucos fizeram barulho como o MC5. Um dos segredos era a envenenada guitarra Fender Stratocaster pintada como a bandeira dos EUA de Wayne Kramer, que morreu na sexta-feira (2/2) aos 75 anos de causas não reveladas de imediato.
A banda da Grande Detroit nunca vendeu muitos discos, mas seu álbum de estreia “Kick Out the Jams”, gravado ao vivo no Halloween de 1968 e lançado em 1969, virou referência instantânea da união de barulho com engajamento político.
O vocalista Rob Tyner vociferava o palavrão “motherfuckers!” na introdução da música-título e causava sérias dificuldades para que tocassem o MC5 nas rádios. E as guitarras gêmeas de Wayne Kramer e Fred “Sonic” Smith criavam uma massa de ruído que se inspirava no rock e no free jazz que assustava desavisados.
Guitarras gêmeas, mas não idênticas. Kramer tinha um truque para ser mais ouvido que Smith na hora dos solos.
Numa entrevista de 2022 para o site Guitar.com, ele contou que colocou na sua Fender Stratocaster um captador Humbucker, que rende um som mais cheio e é mais comum em guitarras da marca Gibson.
“Éramos dois guitarristas com amplificadores Marshall de 100 watts. Era quase impossível um se destacar do outro assim. Por isso coloquei um Humbucker como captador do meio para meus solos ficarem mais altos”, disse Kramer ao Guitar.com.
Na mesma entrevista, ele relembrou as inspirações para pintar a bandeira americana em seu instrumento. Inicialmente, a ideia surgiu depois de ver Pete Townshend, do The Who, com uma guitarra com pintura da bandeira do Reino Unido.
A bandeira na guitarra de Wayne Kramer
Sendo americano e não britânico, Kramer optou pela bandeira estrelada dos EUA. A certeza veio ao observar como o símbolo nacional vinha sendo usado por direitistas defensores do envolvimento americano na Guerra do Vietnã.
“É minha bandeira também. Não é a bandeira só dos direitistas. Eles tentaram cooptar o símbolo da bandeira. E eu disse: ‘Não tão rápido. Esta também é minha bandeira e eu discordo dessa guerra”.
O MC5 (sigla para Motor City 5, porque era um quinteto saído da área de Detroit, a capital da indústria automotiva americana) se tornou uma banda de radicais de esquerda no meio do caminho. Kramer e “Sonic” Smith começaram em 1963 como mais uma banda de garagem.
O som foi sendo enriquecido pelo incomum interesse dos dois guitarristas no free-jazz ruidoso e experimental de artistas como John Coltrane, Sun Ra e Albert Ayler. E a melhor maneira de fazer uma guitarra soar como um saxofone era com muita distorção e volume.
Começaram a lançar compactos localmente. Em 1965, fizeram “Black to Comm”. Abaixo um vídeo com uma apresentação dessa música no canal 56 de Detroit em 1967.
1- MC5: “Black to Comm” (TV de Detroit, 1967)
Em 1966, fizeram uma cover de “I Can Only Give You Everything”, da banda norte-irlandesa Them, do vocalista Van Morrison. A versão do MC5 é mais pesada. Trinta anos depois, o artista americano Beck usou o tema de guitarra desacelerado para criar sua “Devil’s Haircut”.
2- MC5: “I Can Only Give You Everything” (1966)
Ainda em 1966, o MC5 lançou uma espetacular sinfonia de barulho chamada “I Just Don’t Know”.
3- MC5: “I Just Don’t Know” (1966)
Foi uma época em que a Guerra do Vietnã e a luta dos negros pelos direitos civis causou muita polarização e violência nos EUA. E o MC5 foi assumindo uma postura de esquerda radical, junto com a paixão pela maconha (e, depois, outras drogas).
Em 1968, o MC5 já era o principal representante do rock de Detroit, mais bruto, rústico, sem frescuras e desafiando limites. Naquele momento, The Stooges, de Iggy Pop, ainda eram vistos como primos mais novos do MC5.
A contestação dos jovens à Guerra do Vietnã, que matava cada vez mais soldados americanos (muitos convocados contra a vontade), causou o grande tumulto da convenção do Partido Democrata em Chicago, em agosto de 1968.
Explica-se: o Partido Democrata estava no poder com o presidente Lyndon B. Johnson, que abriu mão da reeleição. Por esse detalhe, protestar contra a Guerra do Vietnã era coisa para ser tratada com os democratas, não com os conservadores do Partido Republicano.
Enquanto os delegados democratas escolhiam a chapa que iria disputar a eleição presidencial de novembro daquele ano, cerca de 10 mil jovens diante do local tomaram pancada de tudo que é jeito da feroz polícia de Chicago.
Antes da porradaria, o MC5 marcou presença para animar os manifestantes com seu rock radical. Em 2017, Wayne Kramer colocou em seu canal de YouTube cenas filmadas em 25 de agosto de 1968 no protesto. Kramer compôs uma breve trilha para acompanhar as imagens tremidas.
4- Wayne Kramer: “Long Lost MC5 Footage! Democratic National Convention Riots – Chicago 1968”
Nessa época, o MC5 fechou contrato com a gravadora Elektra, de porte médio mas sólida. Começou como um selo voltado para a música folk, mas teve ótimos resultados com novas bandas de rock como Love e The Doors. Além do MC5, a Elektra também pegou The Stooges.
Percebeu-se na gravadora que o impacto sonoro do MC5 era mais impressionante nos shows que no estúdio. Assim, decidiu-se gravar o primeiro álbum durante duas apresentações no Grande Ballroom, em Detroit, nas noites de 30 e 31 de novembro de 1968.
O álbum “Kick Out the Jams” foi para as lojas em fevereiro de 1969. O destaque não musical, que rendeu censura à banda, foi o berro “kick out the jams, motherfuckers!” do vocalista Rob Tyner antes da música-título.
Kramer explicou o título depois. Eles tocavam numa boate de Detroit e a banda que sempre vinha antes deles sempre enrolava para encerrar seu show, embarcando em improvisos (ou jam sessions). Na espera nos bastidores, os membros do MC5 reclamam falando “Kick out the jams!” (ou “chega de jam session”, neste caso).
O guitarrista garantiu que a conotação política só veio depois através da imprensa musical, que viu a frase como uma contestação a limites.
Abaixo, um vídeo de um show de 1970 do MC5 em Detroit que traz as duas primeiras faixas do álbum “Kick Out the Jams” mais “Looking at You”, que entrou no álbum de estúdio “Back in the USA”, lançado naquele ano.
5- “Ramblin’ Rose” / “Kick Out the Jams” / “Looking At You” (ao vivo em Detroit, julho de 1970)
Imagens daquele auge da banda foram compiladas no documentário de curta-metragem “MC5: Kick Out the Jams”, lançado apenas trinta anos depois.
6- “MC5: Kick Out the Jams” (curta-metragem, 1999)
Em 1972, o MC5 se apresentou no programa da TV alemã “Beat Club” em cores estouradas, apresentando seu maior hino.
7- MC5: “Kick Out the Jams” (programa “Beat Club”, Alemanha Ocidental, 1972)
Esse ano de 1972 foi quando a banda se desintegrou. Tinham trocado a Elektra pela Atlantic, da qual foram chutados porque os álbuns “Back in the USA” e “High Time” venderam praticamente nada. E seu empresário, o politicamente radical John Sinclair, estava preso.
Ainda assim foram parar na Europa. A turnê foi um desastre, com datas canceladas em efeito dominó. Chegaram à Finlândia. De um show em Helsinque, saiu o vídeo abaixo com uma cover de “Let It Rock”, de Chuck Berry, com Fred “Sonic” Smith nos vocais principais.
O MC5 decidiu encerrar as atividades com uma celebração. O último show foi em 31 de dezembro de 1972 no Grande Ballroom, em Detroit. Mesmo local da gravação da maior obra da banda.
A guitarra sumiu
Nos anos seguintes, na pior e com sonhos despedaçados, Wayne Kramer mergulhou na heroína e no crime. E vendeu sua marca registrada, a guitarra com a bandeira americana.
Pior: pintou a guitarra de roxo para poder vendê-la. O potencial comprador disse que Kramer tinha estragado a guitarra com a pintura de bandeira. O instrumento foi revendido e Kramer nunca conseguiu localizá-lo.
Em 2011, a Fender lançaria uma versão de fábrica da guitarra-pavilhão, para Kramer e para ser comercializada.
Quanto aos crimes, Kramer foi preso por tráfico por um policial disfarçado em 1976 e foi trancafiado numa penitenciária do Kentucky até 1979.
Curiosamente, conheceu lá Red Rodney, trompetista que tocou com o mito do jazz Charlie Parker. Juntos, estudaram música para esquecer o engaiolamento.
Após se envolver na produção de discos e também trabalhar como carpinteiro, Kramer desenvolveu uma carreira solo por selos independentes nos anos 1990. Lançou cinco álbuns de estúdio entre 1991 e 2002.
Em 2018, Kramer publicou sua autobiografia “The Hard Stuff: Dope, Crime, the MC5 & My Life of Impossibilities”. Sincera, sem dourar pílulas nem superações de novela. Apenas a versão dele dos fatos.
Também em 2018, Kramer montou o projeto MC50, revivendo sua banda com músicos convidados. Em 2022, reassumiu de vez o nome MC5 e estava com álbum e turnê planejados para este ano.
Aqui, um ensaio do MC5 reformado em abril de 2022, direto do canal de Wayne Kramer no YouTube.
8- MC5: “MC5 Rehearsal Sneak Peek! The MC5’s Classic TONIGHT” (ensaio, 2022)
Com a morte de Kramer, o baterista Dennis Thompson torna-se o último membro vivo da formação original que gravou “Kick Out the Jams”. Já morreram o vocalista Rob Tyner (em 1990, aos 46 anos), o guitarrista Fred “Sonic”Smith (em 1994, aos 46 anos) e o baixista Michael Davis (em 2012, aos 68 anos).
9- MC5: “Motor City Is Burning” (programa “Beat Club”, Alemanha Ocidental, 1972)
Para encerrar, o MC5 no programa alemão “Beat Club” (desta vez, em preto e branco) em 1972 com “Motor City Is Burning”.