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A cidade no Alasca que vive embaixo de um único teto

Whittier, no Alasca, é uma cidade que possui apenas uma entrada e uma saída -- e ambas são o mesmo túnel. Com poucos moradores, ela é um mistério para quem é de fora.

Um túnel de pista única e incrivelmente longo é o único caminho para Whittier, e a única rota de saída. Ao sair do outro lado desse buraco escuro, você encontrará todos os ingredientes que compõem uma cidade. Exceto que em vez de um vasto centro urbano, essa cidade tem sido remanejada para caber por completo em uma solitária torre do Alasca.

O túnel de pouco menos de 4 km que leva a Whittier nunca está engarrafado – ele nem pode estar, fisicamente falando. Com 4,8 metros de largura, ele só acomoda o tráfego fluindo em um sentido de cada vez. Ele desemboca em um punhado de prédios, alguns deles ainda servindo a seus propósitos originais.

Os dois maiores são o Edifício Buckner e as Torres Begich. Ambos foram construídos logo após a II Guerra Mundial junto com uma estrada de ferro que levava a elas, uma construção conjunta que custou US$ 55 milhões e que dava aos militares uma base doméstica na mais distante fronteira da Guerra Fria. O Buckner foi abandonado apenas sete anos depois de terminado; os militares notaram rapidamente que não havia muita utilidade para um posto tão avançado. Hoje, o que sobrou dele foram apenas as ruínas.

Exterior do edifício Buckner. Dá para ver as Torres Begich através da janela no canto inferior direito. via Jen Kinney.

As Torres Begich (ou BTI, como são mais conhecidas) permaneceram, porém. Mais do que isso, elas basicamente se transformaram em Whittier, hospedando 75% dos 200 moradores da cidade e oferecendo praticamente todos os serviços básicos do município. O primeiro andar tem as funções básicas da cidade. O departamento de polícia está atrás de uma porta, os Correios, de outra. Desça ao hall e você encontrará a prefeitura, bem como a Kozy Korner, seu mercadinho local.

Um punhado de outras construções polvilha o horizonte. Um enorme ginásio militar agora funciona como local para guardar barcos. Existem um ou dois hotéis que também funcionam como lavanderia, bar e restaurante. Mas a maior e mais colorida fortaleza, da foto abaixo, é o centro de Whittier. Quase todos na cidade chamam-na de casa.

BTI via Jen Kinney.

Para ter uma noção do dia a dia em Whittier, conversamos com Ken Kinney, uma escritora e fotógrafa que viveu em Whittier por vários anos e ficou fascinada por uma cidade que foi profundamente afetada socialmente pelas suas estruturas físicas peculiares.

“Esse foi, realmente, o lugar mais centrado em uma comunidade em que já vivi,” Kinney explicou por telefone. “Mas ao mesmo tempo, como você estava próximo de todos o tempo todo, às vezes você se sente meio claustrofóbico. Em outras, se sente muito grato por eles estarem ali. E ainda há vezes em que, mesmo rodeado por todos os seus vizinhos, você se sente completamente isolado.”

É difícil imaginar por que alguém quereria viver em um lugar assim no meio do Alasca – e, em parte, é isso o que faz com que as pessoas se fascinem por Whittier. Mas dê uma olhada mais de perto e você notará que não há nada de extraordinário a respeito de como muitos dos residentes de Whittier acabaram lá. Ou por que ficaram no lugar.

De volta ao túnel. Computadores ditam os horários dos carros e a agenda da linha férrea, mas um humano ainda precisa ser chamado às vezes. Afinal, em caso de emergência, você não quer colocar em risco o que pode ser, literalmente, sua única saída.

Uma vez por ano, pedestres podem andar pelo túnel de Whittier. Via Jen Kinney.

O abandonado edifício Buckner (esquerda) e as atualmente ocupadas Torres Begich (direita). Via Travis/Flickr.

O Túnel Memorial Anton Anderson (ou como é mais conhecido, Túnel de Whittier) foi construído em 1943 e projetado com trens em mente. A linha traria suprimentos da base protegida de Whittier para Bear Valley. Mais de 60 anos depois, o espaço escavado na Montanha Maynard ainda é o túnel rodoviário mais longo da América do Norte.

Trem saindo do túnel, em direção a Whittier. Via NAParish/Flickr.

Quando os militares pularam fora e deixaram a pequena enseada aos civis nos anos 1960, a grande e solitária entrada da cidade precisou de uma reforma para combinar com os novos tempos. Uma nova camada de concreto nivelou os trilhos com a estrada, permitindo a convivência pacífica entre trens e carros. Para evitar a claustrofobia esperada, as chamadas “casas seguras” foram espalhadas em vários intervalos, então se algum desastre ocorresse, qualquer um azarado o bastante para ser pego no meio de uma viagem poderia se esconder em um lugar (levemente) mais seguro.

Mas desabamentos não são a única preocupação com um túnel desse tamanho. Os únicos pontos de entrada e saída significam que todo o que excede não tem muitos lugares para escapar. O que explica por que motores a jato de verdade em cada uma das pontas injetam ar através do túnel na direção do tráfego. Dessa forma, se alguma coisa no túnel entrar em combustão, as chamas explodiriam atrás dos carros e no mesmo sentido deles – e não contra o fluxo do tráfego.

Esses são os piores cenários, porém. No cotidiano, a preocupação maior incide sobre o controle do tráfego – o que é uma tarefa bem complicada graças à única faixa existente no túnel. Carros a caminho de Whittier têm a chance de entrar a cada meia hora, enquanto aqueles que estão saindo, a cada uma hora. A presença ocasional de trens torna esse balé uma dança um pouco complicada, uma que foi terceirizada a um algoritmo autômato.

Ainda assim, um humano precisa sentar na frente de seis telas enormes sempre que o túnel está em uso (dependendo da estação, ele fecha às 11h da noite e reabre às 5h30 da manhã), assistindo ao túnel e interferindo quando necessário. Se uma ambulância precisar entrar no túnel quando ele está fechado, é preciso chamar o operador de plantão para abrir aquelas grandes portas.

A dispersão da infraestrutura e o isolamento generalizado é parte do que levou Jen Kinney à enseada repleta de montanhas alguns anos atrás.

“Em termos de como ela funciona enquanto um ecossistema, Whittier é um caso interessante porque ela é única,” Kinney nos explicou. “Por exemplo, pense a respeito de serviços de emergência médica no contexto de uma cidade com um túnel; ele leva em conta todas essas considerações extras. Alguém precisa estar sempre de plantão durante a noite toda para o caso de uma ambulância precisar passar. Um voluntário da emergência precisa estar acessível o tempo todo.

“Todos têm uma função. A cidade simplesmente não funcionaria se pelo menos metade das pessoas não quisesse se voluntariar na emergência ou apenas cozinhar para seus vizinhos quando eles estão doentes – todos têm funções como parte de um organismo maior.”

Whittier no inverno (acima) e um morador no edifício Buckner.  Via Jen Kinney.

Numa cidade do tamanho de Whittier, é realmente dever de todos manter as coisas funcionando. Uns poucos moradores trabalham na ferrovia, alguns monitoram o túnel, mas na maior parte, as pessoas são funcionárias da prefeitura de Whittier mesmo. Seja na limpeza da neve, manutenção dos prédios, funções da cidade ou na escola, para aqueles que ficam o tempo todo, Whittier é o seu sustento.

Por a cidade ser tão pequena, todo mundo desempenha um papel fundamental para manter esse organismo vivo autônomo. Sem a professora do Ensino Médio, sem os voluntários da emergência (mesmo sem os bêbados que ficam no bar o dia inteiro enchendo a cara), as infraestruturas física e social de Whittier não funcionariam.

Vista de Whittier do edifício Buckner. Via Jen Kinney.

Os turistas e trabalhadores sazonais que visitam Whittier no verão para trabalhar nas docas e na fábrica de conservas são fáceis de entender. Eles estão lá a trabalho ou só de passagem. Mas e aqueles que se referem a Whittier como seu lar? De acordo com Kinney, quanto mais tempo ela ficava dentro das relativamente poucas paredes da cidade, mais difícil se tornava fazer generalizações sobre o que havia trazido seus vizinhos a Whittier.

“Para um,” explicou Kinney, “viver em Whittier era maravilhoso porque eles eram realmente sociais e podia estar entre pessoas constantemente. E para outros, era realmente maravilhoso porque eles podiam ficar completamente isolados o tempo todo. Mas os motivos dessas pessoas estarem lá e o que as levaram a Whittier, a variedade de histórias é enorme.”

Para a maioria, porém, Whittier é uma cidade transitória. Eles vinham, ficavam por um ano e nunca mais voltavam. Ou vinham como turistas, em algum tour de verão. Ou para atravessar o abandonado edifício Buckner. Mas eram os que ficavam no inverno que compunham seu núcleo.

Moradora de Whittier. Via Jen Kinney.

Kinney nos contou de como uma mulher se encontrou em Whittier porque sua mãe, uma festeira com problemas com álcool, viajou ao Alasca nos anos 1970, encontrou um trabalho lá, sentiu-se amada e mudou completamente sua vida. Após reparar sua relação com a filha, essa veio visitá-la por dois meses que acabaram se transformando em 35 anos e quatro gerações, todas em Whittier.

Outra moradora se referiu explicitamente a Whittier como um local seguro contra seu ex-marido que abusava dela. Lá, ela instruiu os condutores de trens a não permitirem que ele atravessasse o túnel. Para ela, Whittier significa segurança.

Vista do edifício Buckner. Via Jen Kinney.

Moradores de Whittier. Via Jen Kinney.

O que torna Whittier tão fascinante para quem está de fora não é apenas o grupo super diverso de pessoas que acabaram lá, mas que ele tenha permanecido junto em Whittier.

“Você tem esse tipo de camaradagem forçada onde, superficialmente, essas pessoas podem não ter necessariamente nada em comum,” elaborou Kinney. “No verão, tínhamos essas fogueiras e todo mundo aparecia. As idades iam de 17 a 55 anos, porque não é possível que haja muita distinção em um lugar com tão pouca gente…

“Eu já havia morado em Nova York, então estava acostumada a estar rodeada por pessoas o tempo todo; não era isso o que me chamava a atenção. O que era estranho era conhecer a pessoa do outro lado de cada parede. Em muitos casos, sabia exatamente quem vivia nos apartamentos dos lados, acima e abaixo do meu.”

Igreja em Whittier. Via Jen Kinney.

Quando você começa a se sentir muito fechado, Whittier certamente não facilita uma escapada eventual. Quer entrar no carro e pegar um cineminha em Anchorage, a uma hora dali? Tomara que na volta o túnel permita que você passe de noite. De outro modo, você terá que se virar para dormir. Mesmo que você sinta um impulso, uma vontade repentina, de ir a algum lugar, qualquer lugar, se perder a janela do túnel por apenas um minuto, terá que esperar uma hora antes que as direções sejam trocadas novamente e você possa sair da cidade.

Gary na Kozy Korner, nas torres Begich. Via Jen Kinney.

Parquinho interno na escola. Via Jen Kinney.

O que realmente faz com que muita gente fixe residência em Whittier? De acordo com Kinney, uma grande dose de pura inércia.

“Queria quer as histórias das pessoas tivessem um tom dramático, do tipo ‘… e então eu notei que adorava aqui’, mas geralmente eram mais banais do que isso. Pense sobre o motivo de vivermos onde vivemos, em qualquer lugar – em parte é por oportunidades, em outra, vontade e em outra, inércia. Quando você está em algum lugar, é mais fácil permanecer nele. Então não importa o que eu estivesse buscando, por alguma explicação mística do porquê as pessoas amam esse lugar, normalmente se resumia à lealdade. As pessoas são leais a lugares onde estão e àqueles que conhecem.”

No fim, o que mantém pessoas em Whittier não é muito diferente do que nos segura em nossas cidades. A diferença é que, no caso de Whittier, aquela cidade é nada mais do que uma enorme casa.

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