Yoko Ono, 90 anos: como a artista multímidia fisgou John Lennon

Multi-artista japonesa chega aos 90 anos e parece, após décadas de ofensas, finalmente afastar a pecha de "a mulher que acabou com os Beatles"
Imagem: Yoko Ono Collector of Skies/Reprodução

Yoko Ono chegou aos 90 anos no último 18 de fevereiro de 2023. A artista multimídia (performática, pintora, escultora, poeta, cantora, compositora, cineasta) seguiu o caminho do avant-garde, mas virou celebridade como “a mulher que acabou com os Beatles” por seu casamento com John Lennon, que teria feito a cabeça dele para abandonar a maior banda de rock daquela época e de todos os tempos.

Pouquíssimas pessoas podem dizer que mudaram a história da música pop. Yoko é uma delas. Curiosamente, foi sua arte “esquisita” que revirou a cabeça do astro inglês. Mas como ela foi parar em Londres para conhecer Lennon numa galeria de arte em 1966?

Nascida numa família abastada, Yoko demonstrou cedo interesse por artes. Teve lições de piano com o pai, banqueiro de profissão e pianista clássico formado em conservatório. Após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, a família mudou-se para Nova York, mas Yoko seguiu no Japão estudando.

Yoko Ono com 16 ou 17 anos, em 1948 Imagem: Reprodução

Yoko Ono, treinando piano com 15 anos, em 1948. Imagem: Reprodução

Ela foi para os Estados Unidos apenas em 1952, aos 19 anos. Na universidade, logo se enturmou com o pessoal das artes. E começou a atuar profissionalmente na entrada da década de 1960 e envolveu-se com o grupo Fluxus.

Em sua visão vanguardista, Yoko se manifestava em vários formatos. Pintura, poesia, escultura, instalações de objetos, música, cinema avant-garde.

Apresentou-se com o notório compositor experimental John Cage. Ficava dentro de um saco num palco na manifestação artística que ela chamava de Bagism. Também mantinha uma atitude feminista em seu trabalho.

Foi o prestígio nos círculos que apreciavam arte diferente e contestadora que a levaram para montar uma exposição em Londres.

Instalação artística de Yoko Ono em 1966. Imagem: Yoko Ono-Collector of Skies/Reprodução

Na capital inglesa, tentou um primeiro contato com os Beatles indo visitar Paul McCartney para pedir a cessão de um manuscrito de alguma música do grupo para um livro que o amigo John Cage vinha compilando.

Paul disse que não tinha material assim (certamente já estava guardando tudo para seu livro “The Lyrics: 1956 to the Present”, lançado em 2021), mas indicou que Lennon poderia ceder algo. Por correspondência, John enviou seu manuscrito de “The Word”, composição do álbum “Rubber Soul”. Ficou nisso.

Na noite de 7 de novembro de 1966 (dois dias antes de Paul McCartney “morrer” num acidente de carro), Lennon estava de bobeira, já que os Beatles estavam em recesso do estúdio Abbey Road.

Decidiu ir à Indica Gallery, do amigo John Dunbar, para conferir a exposição da artista japonesa vinda de Nova York antes da inauguração. John foi com sua atitude sarcástica e a sensação de ser dono do mundo que a Beatlemania lhe conferiu. E também com seu interesse por jogos de palavras, desenhos estranhos e coisas diferentes.

Ciceroneado por Yoko e Dunbar, o beatle logo topou com a obra “Apple” – uma maçã de verdade sobre um pedestal. Não resistiu ao ímpeto moleque e deu uma mordida na fruta. Yoko ficou possessa enquanto Dunbar fazia sinais para ela se controlar. Afinal, Lennon era rico e podia gastar uma boa grana em alguma obra.

Sim, a obra de Yoko e esse momento podem ter inspirado a escolha de Apple como nome da gravadora dos Beatles, com uma maçã verdinha igual como logotipo. Só que também vem da apreciação de Paul McCartney pelo quadro ” Le Fils de l’Homme”, do pintor belga René Magritte, no qual uma maçã cobre o rosto de um homem com chapéu coco.

A maçã, de Yoko Ono. Imagem: Yoko Ono Collector of Skies/Reprodução

Lennon também topou com “Ceiling Painting (YES Painting)” – uma escada que levava a uma abertura no teto para que se pudesse olhar o que havia dentro. O que havia era apenas a palavra “YES” escrita. Anos depois, John contou que foi cativado pela atitude positiva da obra.

O ponto alto foi “Painting to Hammer a Nail”, uma tela com um martelo ao lado para que o visitante pudesse pregar um prego nela. Lennon queria bater seu preguinho, Yoko proibiu porque a exposição ainda não tinha sido aberta ao público.

Aflito, Dunbar de novo gesticulou e Yoko cedeu: o beatle poderia martelar se pagasse 5 shillings (moedinha britânica abolida em 1970, cujo valor corresponde a 5 centavos de libra de hoje – ou seja, Yoko pediu 25 centavos de 2023).

John recorreu ao senso de humor e propôs: “Vamos fazer assim: eu pago 5 shillings imaginários e você me deixa bater um prego imaginário”. A tirada desarmou Yoko, que pela primeira vez achou o astro pop interessante.

Por cerca de um ano e meio, Lennon ficou encafifado com a artista japonesa. Os dois se corresponderam, se falaram por telefone e Yoko lhe enviou seu livro de poemas curtos sem rima “Grapefruit”, publicado em 1964. Volta e meia, John lia alguma página e encontrava algo que considerava profundo.

Livro de poemas “Grapefruit”, de 1967. Imagem: Reprodução/MoMA

Em maio de 1968, com a esposa Cynthia de férias na Grécia, John tentou sua sorte. Convidou Yoko para ir à sua mansão. Separada havia anos do primeiro marido Tony Cox, também artista plástico, ela estava livre. Passaram a noite gravando “música concreta” (que seria lançada como o álbum “Two Virgins” em novembro daquele ano). E transaram pela primeira vez.

Yoko foi ficando na casa. Cynthia finalmente voltou de sua viagem e encontrou o novo casal bebendo chá e mal se importando com o flagrante. Separação instantânea. Pouco depois, John começou a aparecer em público com Yoko.

A partir daí, o mundo caiu na cabeça de Yoko. Falava-se e publicava-se de tudo sobre ela, quase nunca num viés positivo. Primeiro de tudo, ela era uma destruidora de lares, já que o beatle tinha “um casamento feliz” para mídia e público que adoram contos de fadas..

Yoko era chamada de feia, “mulher-dragão”, chata, irritante, manipuladora. Não ajudou muito posar nua ao lado de Lennon e exibir seu corpo fora do padrão de beleza e sensualidade em vigor para a capa do álbum “Two Virgins” (1968).

Capa “Two Virgins”, de 1968. Imagem: Divulgação

Por um ou dois anos, a vida do casal foi um turbilhão. Yoko ganhou lugar cativo no estúdio durante as gravações do “White Album” dos Beatles e teria convencido John a enfiar a colagem sonora “Revolution 9” no álbum duplo (sempre campeã em qualquer enquete de “pior música dos Beatles”).

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John e Yoko são presos por posse de drogas. Yoko consegue seu divórcio de Cox mas passa a brigar pela guarda da filha Kyoko. Yoko segue no estúdio enquanto os Beatles filmam e gravam “Get Back”/”Let It Be”. Yoko sofre um aborto (e a foto dela e John no hospital se torna capa do álbum “Life with the Lions”).

A prisão de John e Yoko, em 1968. Imagem: Reprodução

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John e Yoko se casam em Gibraltar. Em nome da paz e contra a Guerra do Vietnã, passam a lua-de-mel na cama num hotel em Amsterdam, num quarto aberto à imprensa e visitantes 24 horas por dia.

John grava “The Ballad of John and Yoko” com Paul e a música é lançada sob o nome dos Beatles – a primeira “música de não-ficção” da banda, que relata todas as peripécias dos recentíssimos casamento e lua-de-mel. John e Yoko também lançam outro LP, “Wedding Album”, com duas faixas: conversas de um lado e, virando o disco, um falando o nome do outro.

John e Yoko são acusados de sequestrar Kyoko e são obrigados a devolvê-la para Tony Cox. John e Yoko fazem performances avant-garde. John tem seu machismo de outrora desmontado a cada dia pelo feminismo de Yoko. John e Yoko se engajam cada vez mais na campanha pela paz mundial. John pensa cada vez menos em Beatles e cada vez mais em sair dos Beatles.

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John e Yoko montam sua banda-conceito Plastic Ono Band, cujos integrantes seriam quem estivesse no palco ou no estúdio num determinado momento.

Banda conceitual Plastic Ono Band. Imagem: Yoko Ono Collector of Skies/ Reprodução

John decide se apresentar no festival de Toronto, reúne às pressas três músicos (um deles, Eric Clapton) e o único ensaio é no avião Londres-Toronto. John canta covers e duas músicas-solo. A metade final é com Yoko cantando e berrando sobre improvisos e microfonias, num estilo para poucos ouvidos.

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John anuncia aos outros Beatles que está saindo da banda. Paul pede segredo para não prejudicar futuros lançamentos. John devolve sua medalha de Membro do Império Britânico recebida em 1965. John e Yoko raspam seus cabelos com máquina um.

Paul anuncia o fim dos Beatles. Yoko torna-se ainda mais odiada, acusada de provocar a dissolução da banda. John torna-se cada vez mais agressivo em entrevistas para defender a esposa.

Tudo isso se passou num período de maio de 1968 a abril de 1970. Nos anos seguintes, a divisão de carreiras musicais do casal ficou mais nítida – John fazia seus álbuns, Yoko fazia os dela.

Mas Yoko seguia levando a culpa por tudo. John fez um álbum mais ou menos – culpa da Yoko. John virou ativista de esquerda – culpa da Yoko. O casal é perseguido pelo FBI e pelo governo Nixon – culpa dessa Yoko…

Imagine, 1972. Imagem: Divulgação

O casal se separou em 1973, quando Yoko mandou Lennon embora de casa porque andava bebendo e até dando suas escapadinhas. John se mudou para Los Angeles com May Pang, a secretária particular da própria Yoko – com aprovação dela!

O ex-beatle passou um ano enchendo a cara e telefonando para Yoko pedindo para voltar. Voltaram no começo de 1975. Mudaram-se para o edifício Dakota, de frente para o Central Park de Nova York. Yoko engravidou imediatamente. Após vários abortos espontâneos, conseguiu dar à luz Sean Ono Lennon em 9 de outubro de 1975, 35º aniversário de John.

Imagem: Yoko Ono Collector of Skies Reprodução

John tirou um sabático para virar dono-de-casa e cuidar do filhinho. Yoko virou a mulher de negócios do lar, cuidando da dinheirama, dos investimentos e de tudo relacionado aos Beatles.

Em 1980, o bichinho da música picou John e ele insistiu para retomar a carreira com um álbum meio-a-meio com Yoko. Gravam e lançam “Double Fantasy” em três meses.

Poucas semanas depois do lançamento, em dezembro de 1980, um fã psicopata assassina Lennon a tiros na entrada do edifício Dakota diante de Yoko. Em 1981, ela coloca os óculos ensanguentados do marido na capa de seu álbum “Season of Glass”.

A morte de Lennon foi uma espécie de início de um processo de reconhecimento do valor de Yoko. Primeiro, por compaixão pela tragédia. Depois, pelo uso de sua obra musical como inspiração para novos artistas alternativos.

Enfim, pelo pacto de paz firmado com Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr na década de 1990, que desemperrou muitos projetos de arquivo dos Beatles. Material que Yoko bloqueava por dar prioridade ao arquivo individual de Lennon. Graças à reconciliação, o mundo conheceu documentários e álbuns como “Anthology” e o recente “Get Back”.

E vale apontar que parece que o mundo alcançou Yoko. Seu feminismo, seu ativismo, sua recusa em se encaixar num padrão de beleza imposto ou de ser uma esposa-princesa que “sabe seu lugar”, sua arte desafiadora para gostos comuns… tudo isso faz parte de atitudes e reivindicações mais aceitas e espalhadas atualmente.

Recomenda-se a biografia “Yoko Ono: Collector of Skies”, de Nell Beram e Carolyn Boriss-Krimsky, publicada originalmente em 2012. Várias imagens do livro foram reproduzidas aqui pelo valor informativo e histórico das imagens.

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Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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