Preces no celular: como as religiões usam apps móveis – e porque algumas se recusam a usá-los
Hoje em dia, boa parte das pessoas tem um resumo de suas vidas dentro de uma série de apps. Agenda, dieta, amigos, família, jogos – está tudo em um conjunto de ícones em cores brilhantes e fáceis de usar. E até mesmo a religião está a um toque de distância do Google Play ou App Store, indo além de simples apps da Bíblia. Mas ela pode ir além.
A religião esteve associada a um dos maiores avanços tecnológicos da história humana: a invenção da imprensa de Gutenberg, que facilitou a publicação de livros – uma verdadeira revolução em espalhar conhecimento. A Bíblia foi o primeiro texto a ser produzido em massa. Isso obviamente mudou: demorou bastante para ela – e os textos de outras religiões – aparecerem nos apps para celular e tablet, a mídia mais popular da nossa época.
Agora, estes apps estão sendo criados aos montes. Um estudo em andamento feito por Heidi Campbell, professora de comunicação na Universidade Texas A&M (EUA), catalogou mais de 500 apps religiosos só na App Store. No entanto, há uma questão entre os líderes religiosos e as congregações que gera uma certa cautela em misturar apps e religião: é correto usar a mesma tecnologia que permite marcar sexo casual para preces sagradas?
De acordo com Cheryl Casey, professora-asssistente de comunicação de mídia na Champlain College (EUA):
Quando uma nova tecnologia – como a impressão ou a internet – desencadeia uma grande mudança cultural, os desafios que isso traz para a religião são imensos. O desenvolvimento cultural acaba por mudar a forma como se pensa em Deus e como se fala sobre ele.
Mas há outra questão, que talvez receba menos destaque. As instituições religiosas confiam que seus seguidores devotos se manterão fiéis, mas se todos começarem a acreditar que podem cumprir com suas necessidades e obrigações espirituais em qualquer lugar e a qualquer momento, esses fiéis podem passar a achar que as instituições religiosas já não são necessárias.
Lembretes sagrados
Como todos nós sabemos, as pessoas estão muito ocupadas hoje em dia. Nós mal conseguimos encaixar umas poucas horas de sono em nossas agendas, e temos menos tempo ainda para momentos de reflexão religiosa. E se usamos apps de organização para tudo, nada mais normal do que aparecer toda uma pletora de opções para manter seus rituais religiosos em dia.
Aqui temos os apps menos controversos em termos de separar aquilo que é apropriado de acordo com a fé quando ela se mistura com a tecnologia. Eles não tentam ser links diretos para a religião: pelo contrário, eles estão aqui só para funcionarem como pequenos lembretes, da mesma forma que uma agenda. A diferença é que os apps religiosos podem salvar também a alma dos seus amigos. Ao menos é nisso que o app religioso Pray! quer que você acredite.
No que ele é diferente de outro app de lembretes? Bom, em nada. A única diferença é que ele alega servir especificamente para orações. Mesmo no mundo mobile, a religião precisa ser algo especial e separado da sua rotina diária.
Há também um app islâmico usado para um propósito similar, o Muslim’s Prayer Times, mas ele é mais específico ao proporcionar algo que os outros apps simplesmente não podem fazer. O app não só auxilia seus usuários a manter o controle de suas cinco orações diárias, mas também traz uma bússola para garantir que eles sempre saibam para que lado fica Meca, já que a tradição islâmica diz que seus fiéis devem rezar voltados para essa direção.
Os apps acima são os menos transgressores e, como tais, os menos atraentes. Assim que a sedução da conveniência entra na mistura, no entanto, você começa a ver um problema.
O bom e-book
Digitalizar textos religiosos não é uma novidade. As pessoas estão fazendo isso desde os anos 90. Mas mesmo agora, a prevalência dos smartphones não conseguiu fazer com que telefones carregados de escrituras sagradas sejam algo comum: algumas religiões ainda estão esperando que seus livros possam ser digitalizados.
O app mais famoso da Bíblia, o YouVersion, é usado como texto principal em várias igrejas modernas, e frequentemente os textos do app são projetados em telas grandes para que os congregados possam lê-los. Porque, além de ser simplesmente uma loja de conveniência dos textos bíblicos, o app permite que as igrejas criem um planejamento customizado de estudo da Bíblia que seus membros podem seguir.
Embora isso funcione no cristianismo, outras religiões (como o judaísmo ortodoxo) não permitem que seus textos sagrados sejam virtualizados. Campbell explica:
Alguns desses apps encontram barreiras teológicas, como por exemplo “o toque da tela cria um obstáculo entre o leitor e o texto real — o texto offline”. Outros oferecem uma espécie de orientação, como usar um yad quando estiver lendo a Torá no celular. Algo parecido acontece no Islã: existem algumas regras para segurar e manusear os textos sagrados.
Há uma forte conexão entre o online e o offline. E na maior parte dos casos as pessoas estão tentando analisar quais são as regras offline e que tipos de prática precisam ser adotadas e adaptadas para os espaços virtuais.
Ritos religiosos
Você começa a entrar em território questionável com apps que prometem facilitar as experiências religiosas em si. Embora a ideia de enviar uma mensagem para Deus usando o celular pareça completamente absurda, alguns desses apps argumentam que isso não é tão diferente assim dos métodos tradicionais de oração. Tecnicamente, os dois seriam virtuais.
De acordo com Casey:
O ciberespaço “revirtualiza” o ritual religioso. Como resultado, o ritual, como símbolo, nega a si mesmo, então o sagrado ou divino para o qual ele aponta se torna muito mais claro…
O ciberespaço empresta um componente de negação a qualquer ritual, tornando-o, assim, um meio excepcionalmente adequado para o desenvolvimento de rituais. A comunhão da igreja católica é um exemplo particularmente forte desse argumento. Como resultado, os usuários são forçados a repensar os critérios para rituais religiosos viáveis.
Em outras palavras, o uso de apps religiosos pode acabar salientando como alguns rituais podem parecer absurdos e sem sentido. Mas, bem, é exatamente isso que faz com que eles sejam rituais. Obviamente, as instituições religiosas olham para esses apps com muita desconfiança e um dos exemplos mais notáveis é o app Confession. Sim, ele serve para que você se confesse e meio que elimina o padre da equação.
O nome completo do app é Confession: a Roman Catholic App (Confissão: um Aplicativo Católico Romano). Então você pode imaginar que a Igreja Católica vê a existência dele como um problema. E uma olhada nas capturas de tela abaixo deixa claro que, embora o app tenha sido criado para ser usado como um pré-confessionário, no final das contas ele se propõe como nada menos que um atalho para a salvação eterna.
O app causou uma barulheira quando foi lançado pela primeira vez, em 2011. A ideia era que o Confession servisse como guia, permitindo que o fiel tomasse consciência através conhecimento de seus vários pecados antes de se encontrar com um sacerdote de verdade. Em outras palavras, ele serviria para que as confissões fossem mais rápidas e organizadas. Não se trataria de uma substituição, mas meio que bagunçaria o paradigma da confissão.
Como Campbell disse ao Gizmodo:
O problema com o Confession não era o app em si, mas a forma como ele foi criado. Ele basicamente torna o processo de confissão mais eficiente, mas a mídia o divulgou como se ele fosse uma substituição para a confissão ao vivo. Vários grupos e organizações religiosos têm fronteiras muitos rígidas para esse tipo de coisa. Os rituais devem ser feitos de tal forma; a comunidade gosta de tal prática; etc. No momento em que o app transgride essas fronteiras, vai ser visto como problemático.
Embora seja tecnicamente descrito como um guia, depois de passar pelos vários passos para a salvação dentro do app, não é difícil perceber que as pessoas poderiam simplesmente começar a vê-lo como uma confissão faça-você-mesmo. Especialmente se, como eu, você nunca fez uma confissão antes e tem poucos pecados veniais (e alguns poucos pecados mortais) para tirar de dentro do seu peito.
Então, sim, a ideia de absolver a mim mesma das minhas transgressões através do brilho inanimado do meu celular, que não é capaz de me julgar, pode ser bem tentadora. E, aparentemente, outros pensaram a mesma coisa que eu.
O Confession se tornou um problema tão grande entre os fiéis que o Vaticano sentiu a necessidade de se manifestar contra a forma como algumas pessoas estavam usando o app. “É essencial compreender bem que o sacramento da penitência requer diálogo pessoal entre o penitente e o confessor e também requer a absolvição dada pelo confessor”, disseram eles; e essa interação sagrada “não pode, de modo algum, ser substituída por um aplicativo tecnológico”.
Novos ícones
A questão é que, as instituições religiosas gostando ou não, a maneira como nos compreendemos a fé está mudando. Casey vai ainda mais longe ao argumentar que “longe de esgotar as práticas religiosas tradicionais de seus significados sagrados, os rituais online oferecem experiências significativas para aqueles que procuram novas formas de praticar sua fé”.
Até mesmo a Igreja da Inglaterra, uma das instituições religiosas mais resistentes a mudanças, apresentou recentemente seu Book of Common Prayer em forma de app. A fim de permanecer acessível, a religião precisa estar disposta a fornecer os recursos que se tornaram tão comuns na vida diária. No entanto, fica uma questão: os líderes religiosos estão dispostos a flexibilizar as regras para permanecerem relevantes em um mundo que se recusa a esperar?