Mutação rara no povo Bajau permite que eles permaneçam mais tempo debaixo d’água

O povo Bajau, da Malásia e das Filipinas, é conhecido por suas habilidades de mergulho livre, muitas vezes trabalhando em turnos de oito horas em busca de peixes e outras criaturas marinhas. As sessões subaquáticas podem durar mais de dois minutos, com totais diários acumulados de respiração geralmente chegando a cinco horas. Uma nova pesquisa […]

O povo Bajau, da Malásia e das Filipinas, é conhecido por suas habilidades de mergulho livre, muitas vezes trabalhando em turnos de oito horas em busca de peixes e outras criaturas marinhas. As sessões subaquáticas podem durar mais de dois minutos, com totais diários acumulados de respiração geralmente chegando a cinco horas. Uma nova pesquisa sugere que esses feitos impressionantes não são resultado de treinamento, mas, sim, um exemplo de seleção natural em ação — que, neste caso, dotou os indivíduos Bajau de baços anormalmente grandes.

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Os bajaus são uma pequena comunidade do Sudeste Asiático que vive na Malásia, no arquipélago de Sulu, nas Filipinas, em Mindanao, Bornéu e nas ilhas indonésias orientais. Alguns grupos de Bajaus ainda têm um estilo de vida tradicional, vivendo em casas flutuantes ou cabanas de madeira apoiadas sobre a água em palafitas de madeira. Frequentemente referidos como “nômades do mar”, os bajaus são mergulhadores livres formidáveis que praticam mergulhos em apneia por milhares de anos. Atualmente, mergulhadores livres do povo Bajau usam equipamentos rudimentares, como máscaras e lanças, enquanto procuram por peixes, lagostas e polvos.

Casas Bajau sobre a água (Foto: Melissa Ilardo)

Sua capacidade de permanecer submersos por longos períodos é bastante documentada, levando pesquisadores da Universidade de Copenhague e da Universidade da Califórnia em Berkeley a iniciarem uma investigação científica. Os resultados do estudo, publicado na quinta-feira (19), na Cell Press, sugerem que seus baços anormalmente grandes são o resultado de uma mutação genética, e não um fenômeno relacionado ao estilo de vida. É um exemplo raro de seleção natural em ação em humanos modernos, e as novas descobertas dessa pesquisa podem levar a novos tratamentos para distúrbios respiratórios.

Mergulhador bajau caçando peixe (Foto: Melissa Ilardo)

À primeira vista, o baço não parece um órgão provável para nos ajudar a prender a respiração. Suas principais funções são filtrar o sangue como parte do sistema imunológico, combater bactérias e reciclar os glóbulos vermelhos. Mas ele também desempenha um papel importante durante a falta aguda de oxigênio, ou seja, quando seguramos a respiração por um período prolongado de tempo. Quando a respiração para, nossos corpos desencadeiam uma série de mudanças fisiológicas: nossa frequência cardíaca desacelera, os vasos sanguíneos em nossas extremidades se contraem e nosso baço diminui de tamanho. Quando o baço se contrai assim, ele libera glóbulos vermelhos oxigenados, que fornecem um suprimento extra de oxigênio para a corrente sanguínea. Quanto maior o baço, maior a quantidade de sangue recém-oxigenado.

Entendendo que isso era uma pista para uma capacidade extraordinária de segurar a respiração, a pesquisadora principal do estudo, Melissa Ilardo, levou uma máquina portátil de ultrassom para o Sudeste Asiático para medir o tamanho dos baços dos bajaus. O que, como os próprios pesquisadores admitem, foi um pouco estranho.

“Basicamente, eu apareci na casa do chefe da aldeia, essa estranha garota estrangeira [referindo-se a si mesma] com uma máquina de ultrassom, perguntando sobre baços”, disse Ilardo em um comunicado, acrescentando que “são as pessoas mais receptivas que eu já conheci”.

Os resultados dos ultrassons mostraram que os indivíduos bajaus de fato têm baços maiores, e eles são maiores que os encontrados em populações vizinhas não relacionadas. A princípio, essa observação foi atribuída a diferenças no condicionamento físico ou nas respostas fisiológicas — mas o tamanho do baço entre os indivíduos mergulhadores e não mergulhadores do povo Bajau não variou de tamanho, o que sugeriu que alguma outra coisa estava acontecendo. Algo um pouco mais genético.

Aldeões e crianças curiosas observam a pesquisadora Melissa Ilardo fazer medições usando um ultrassom portátil em uma casa bajau (Foto: Peter Damgaard)

Assim, para a etapa seguinte do estudo, os pesquisadores conduziram uma análise genética. Eles descobriram mais de duas dúzias de mutações genéticas, ou variantes, entre o povo Bajau que eram distintas quando comparadas com outras duas populações, os Saluan e os chineses Han. Um marcador, um gene conhecido como PDE10A, foi associado ao baço aumentado. Cientistas que trabalham com ratos estão bastante familiarizados com esse gene, já que ele regula o hormônio da tireoide que controla o tamanho do baço.

É importante ressaltar que o tamanho do baço não é o único fator nas capacidades de retenção da respiração. Os mergulhadores usam várias técnicas para prolongar seus mergulhos, o que poderia explicar também as notáveis habilidades dos mergulhadores bajaus. Ainda assim, é uma descoberta intrigante.

“No geral, nossos resultados sugerem que os bajaus sofreram adaptações únicas associadas ao tamanho do baço e à resposta de mergulho, acrescentando novos exemplos à lista de adaptações genéticas notáveis pelas quais os humanos passaram na história evolucionária recente”, concluem os autores em seu estudo.

De fato, esta não é a primeira vez que cientistas documentam a seleção natural em ação em humanos modernos. Em 2017, por exemplo, pesquisadores da Universidade do Texas descobriram mutações genéticas entre indivíduos tibetanos que os ajudavam a viver e trabalhar no planalto Qinghai-Tibete, que apresenta altitudes de até 4,5 mil metros. De forma fascinante, uma dessas variantes foi herdada de um grupo extinto de humanos conhecidos como Denisovanos, uma espécie irmã dos Neandertais. Portanto, embora a adoção de novas características vantajosas seja o resultado de mutação e seleção natural (como foi provavelmente o caso entre os bajaus), novas características também podem ser introduzidas por cruzamentos e pela retenção subsequente (ainda via seleção natural) de uma nova característica benéfica.

Ainda que ambos os estudos registrem adaptações respiratórias entre seres humanos vivos, a natureza das adaptações é qualitativamente diferente. Enquanto a hipóxia afeta pessoas que vivem em ambientes de baixo oxigênio (ou seja, grandes altitudes), os bajaus trabalham em ambientes onde não existe oxigênio respirável, mesmo que por períodos de tempo relativamente breves. Para os mergulhadores livres do povo Bajau, a falta de oxigênio é mais aguda. Portanto, está mais próxima de apneia do sono do que de hipóxia crônica. E, inclusive, os pesquisadores esperam que suas descobertas possam ser usadas para desenvolver novos tratamentos para hipóxia em altitude elevada e distúrbios do sono, como a apneia do sono.

Como humanos, às vezes gostamos de pensar que somos imunes à seleção natural, mas esse estudo mostra que não é este o caso.

“Acho fascinante ver o quão extraordinária é essa população, pensar que eles são quase como super-humanos que vivem entre nós com essas capacidades realmente extraordinárias”, disse Ilardo. “Mas eu também acho que a seleção natural é muito mais poderosa do que nós às vezes acreditamos, e talvez devêssemos procurá-la em mais lugares do que pensávamos.”

Os pesquisadores estão animados em compartilhar suas descobertas com os bajaus que participaram do estudo.

“Eu queria garantir que eles entendessem a ciência por trás do que eu estava fazendo, de modo que não fosse apenas eu fazendo suas medições sem retribuir. E nós temos, sim, uma viagem planejada para retornar à comunidade para explicar os resultados para eles”, disse Illardo. “Eles são exploradores, então acho que são inerentemente curiosos e querem saber mais sobre o mundo, inclusive sobre sua própria biologia.”

[Cell Press]

Imagem do topo: Melissa Ilardo

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