A arquitetura opera milagres? O processo de beatificação de Antoni Gaudí
Posso descrever minha visita a Sagrada Família de Barcelona, uma basílica que parece um castelinho de areia, como um dos momentos mais incríveis da minha vida. Será que eu tive uma experiência espiritual? Talvez. Mas será que eu presenciei um milagre? É isso que um grupo de fiéis está tentando provar em sua campanha para beatificar o arquiteto Antoni Gaudí.
Se isso acontecer, Gaudí será o primeiro arquiteto a alcançar a santidade. Isso o acrescentaria ao exclusivíssimo grupo de indivíduos que foram beatificados sem nunca terem pertencido formalmente à igreja (ao contrário de papas e bispos). Mas porque Gaudí e não, digamos, Michelangelo ou Leonardo da Vinci, que certamente utilizaram seus talentos artísticos em prol da igreja? Ou qualquer um dentro das centenas de outros artistas e arquitetos católicos apostólicos romanos?
“Gaudí devotou sua vida a Deus”, me contou Gabriela González-Cremona, uma advogada que está trabalhando para a Associação Para a Beatificação de Antoni Gaudí. “Ele honrou Deus com suas orações e obras-primas. Tanto sua vida quanto suas obras inspiram o testemunho e intensificam a fé de todos que as contemplam.”
A Sagrada Familia durante sua construção, em 1915. Ela pode ser concluída por volta de 2026.
A justificativa, afirma a associação, está em sua devoção à arquitetura. Gaudí completou muitas construções importantes por toda a Espanha, a maior parte delas localizadas em Barcelona. Mas é sua devoção a uma edificação específica, que veio a consumi-lo por toda a vida, que realmente interessa a igreja. A indefinível Sagrada Família é sem dúvida uma das construções mais famosas do mundo — em boa parte conhecida por estar em construção desde 1882, sem previsão de conclusão.
Apelidado de “Arquiteto de Deus” muito antes da campanha de beatificação, Gaudí foi, segundo diversas fontes, uma pessoa extremamente espiritualizada. Nascido em 1852, Gaudí encontrou inspiração nas forças da natureza desde que começou a trabalhar com seu pai, um ferreiro. Ele nunca se casou, fato que muitos apontam como prova de que ele escolheu viver como um homem santo. Aos 31 anos, ele começou a trabalhar no projeto da Sagrada Família, que monopolizou, lentamente, o resto da sua carreira profissional. Ele recusou qualquer tipo de encomenda nos últimos 10 anos de sua vida, eventualmente abrindo mão de suas posses materiais e se mudando para uma pequena oficina localizada na basílica. Ele morreu em 1926, aos 73 anos, algumas semanas depois de ser atropelado por um bonde.
O processo de beatificação de Antoni Gaudí foi iniciado em 1992, quando um grupo de figuras religiosas, arquitetos, advogados canônicos e outros seguidores começaram a campanha, se lançando em uma missão que consiste basicamente em montanhas de papelada burocráticas. Em 1998, os bispos locais aprovaram a continuidade da campanha, e em 2003, o processo foi aberto oficialmente no Vaticano. A campanha publicou uma cartilha que resume a vida e obra de Gaudí, e documenta o processo de beatificação até o momento.
A oficina de Gaudí na Sagrada Família, que eventualmente virou sua casa, é evidência de que ele vivia humildemente nos olhos de Deus.
Como é de se esperar, a santidade, ou a canonização, não ocorre de um dia para o outro. Na Igreja Católica, o processo tem três etapas: na primeira a pessoa é nomeada Venerável, depois Abençoada e por fim, Santa. O nível de benção (beatificação) requer evidências de um milagre. Para alcançar a santidade (canonização), a igreja precisa de provas de que a pessoa em questão já operou pelo menos dois milagres. (Mártires — aqueles que doam suas vidas à igreja — só precisam de um milagre, o que faz muito sentido.)
O processo de provar milagres é árduo. “Não é a parte mais difícil do processo, mas sim a mais trabalhosa, porque o Vaticano é rígido e exige a avaliação de especialistas para afirmar que o milagre não tem nenhuma explicação científica”, diz González-Cremona. O Vaticano possui um grupo de advogados e especialistas em medicina cujo trabalho é analisar o milagre e determinar se há ou não alguma base científica que justifique seu acontecimento. Como vocês podem imaginar, com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, provar milagres tem ficado cada vez mais difícil. Madre Teresa foi beatificada em 2003, mas seu segundo milagre ainda não foi confirmado, o que significa que ela (ainda) não é uma santa. Além do mais, a igreja tem sido criticada quanto à proeminência de milagres médicos — muitas pedras nos rins desaparecendo — e quanto a ausência de outros tipos de milagres.
No caso de Gaudí, a associação tem se ocupado em acumular centenas de testemunhos que poderão ser oferecidos ao Vaticano como exemplos de milagres. De acordo com os documentos que me foram dados, esses testemunhos são histórias de pessoas que rezaram para Gaudí pedindo ajuda para problemas que vão de desemprego, à inspiração artística, passando por problemas de saúde — e foram atendidos.
Tomem como exemplo a história de P. José Lino Yáñez, um turista de Santiago, que escreveu esse relato em 2005:
“Um ano atrás, Barcelona se chocou com um acidente de metrô. Eu estava participando de uma série de missas nas catacumbas e rezando sobre o túmulo de Gaudí… Estava concentrado em ler o panfleto sobre Gaudí quando o tal acidente ocorreu. Eu fui lançado do meu assento e caí no meio do vagão… Esse acidente poderia me trazer consequência gravíssimas (eu tenho 69 anos). Não sofri nenhum arranhão. Um ano depois, eu gostaria de agradecer ao Servo Catalão de Deus por sua proteção.”
O estudo da obra de Gaudí levou alguns arquitetos e artistas a se converterem ao Catolicismo, de acordo com a documentação. Kenji Imai, um arquiteto japonês, supostamente se converteu ao Catolicismo após visitar a Sagrada Familia. Um escultor chamado Etsuro Sotoo se mudou para Barcelona para trabalhar na basílica e se converteu do Xintoísmo para o Catolicismo — um argumento convincente a favor do poder que o trabalho do arquiteto tem sobre as pessoas.
Conforme a história da beatificação de Gaudí se espalhava pelos blogs de arquitetura, muitos blogueiros não puderam evitar a piadinha óbvia sobre a Sagrada Família, que talvez seja completada no centenário da morte de Gaudí, em 2026: se Gaudí pode fazer milagres, porque a basílica não está pronta?
A eterna construção da Sagrada Família é considerada mais uma prova de que Gaudí foi guiado por uma mão celestial. Uma das razões práticas que explica por que a Sagrada Família ainda não foi concluída é o seu status de catedral expiatória, disse González-Cremona. Ela deve ser construída com doações dos fiéis, e não com financiamento do governo, algo que é amplamente criticado pelo público.
Mas comentários feitos pelo próprio Gaudí em vida parecem mostrar que ele estava trabalhando segundo um cronograma divino. “Quando perguntavam para Gaudí quando a construção do templo expiatório da Sagrada Família seria concluída, ele respondia: ‘Meu cliente não tem pressa'”, diz José Almuzara Pérez, arquiteto e presidente da associação.
Apesar de existirem boatos na mídia local de que a beatificação de Gaudí ocorrerá no próximo ano, Almuzara Pérez prefere assumir uma postura similar a do próprio Arquiteto de Deus perante o assunto da beatificação de Gaudí. “Apenas Deus sabe quando o processo de beatificação de Antoni Gaudí chegará ao fim”, ele diz. “Como Gaudí, queremos trabalhar sem pressa, estudando profundamente seu material biográfico, os testemunhos e os escritos. Nós não temos uma previsão. Quem pode calcular e prever um milagre?”
O interior da Sagrada Familia, foto de SBA73
Para fins hipotéticos, eu tentei imaginar um grupo de americanos fazendo o mesmo com Frank Lloyd Wright (ele era Unitário, mas acompanhem o resto do raciocínio). Ele não construiu uma Sagrada Família, mas projetou edifícios que exigem cuidados constantes e diligentes mesmo anos após sua morte. E, é claro, um posto de gasolina que foi completado 87 anos após ele concluir seu projeto. Wright tem, definitivamente, seguidores que podem ser chamados de discípulos, incluindo aqueles que aprenderam seu ofício e o ensinam para a próxima geração de arquitetos em sua escola, Taliesin West. Dentro do amplo reino de possibilidades, é bem provável que existam pessoas que rezem para ele e acreditam que ele responde suas preces.
O fato do método de Gaudí — ou sua devoção, se você preferir — ter inspirado tantos a seguirem seus passos e se dedicarem à igreja é definitivamente admirável. Existe algum arquiteto na ativa que já passou 40 anos trabalhando em um mesmo projeto? Será que a atual cultura arquitetônica permite esse tipo de coisa? Existem muitas obras inacabadas e famosas ao redor do mundo — muitas delas são igrejas e abadias, inclusive — mas quando olhamos para a Sagrada Família, ela parece ser algo mais. A ideia de Gaudí não apenas encantou o mundo, mas também se manteve como um canteiro de obras ativo por mais de 100 anos. Isso é uma proeza e tanto, e também uma prova de seu talento. Talvez esse seja seu milagre.
Ainda assim, devo admitir que quando encaro sua obra prima, observando as gruas pendendo sobre as alongadas e intrincadas espirais que não pertencem a nenhum movimento arquitetônico e desafiam qualquer categorização, sinto que existem forças maiores agindo neste local, ajudando na construção da visão impossível de Gaudí.
[Imagem do topo A Sagrada Família em 2009, foto de Tassilirosmar]