A China rica a que não estamos acostumados

Peça para um brasileiro médio falar o que vem à cabeça quando mencionamos a China e há uma boa chance de ele descrever pessoas andando de bicicleta rumo a fábricas que pagam mixaria sob olhares dos militares comunistas. A verdade é que mesmo cercados de “Made in China” pra todo lado, sabemos pouco ou temos […]

Peça para um brasileiro médio falar o que vem à cabeça quando mencionamos a China e há uma boa chance de ele descrever pessoas andando de bicicleta rumo a fábricas que pagam mixaria sob olhares dos militares comunistas. A verdade é que mesmo cercados de “Made in China” pra todo lado, sabemos pouco ou temos uma percepção atrasada e estereotipada dos chineses. Mas depois de passar quase 10 dias visitando Pequim, Xangai, Shenzen e Hong Kong a convite da Huawei, revisei um bocado das minhas concepções sobre o país que é fonte dos nossas gadgets.

Nesta primeira da série de reportagens do Giz na China, falo sobre o que talvez mais tenha me chamado a atenção, que desafia a nossa visão tradicional sobre o país: a riqueza. Não a simples riqueza genérica – era de se esperar que a segunda economia do mundo tivesse prédios suntuosos, aeroportos gigantescos e metrôs que funcionam lindamente. Mas falo no nível pessoal: a quantidade de carros de luxo, o tamanho absurdo das lojas da Louis Vuitton e Cartier, mais iPhones no metrô que em cidades americanas e as coberturas triplex. O chinês não quer ser visto com produtos xing-lings ou dirigindo um JAC Motors, e aposta mais do que qualquer outro povo que conheço em posses como símbolo de status. E isso tem um profundo impacto na indústria mundial.

A vista do mais alto prédio da China

Além de uma horrorosa neblina causada pela poluição e o clima seco de outono, o que mais me chamou atenção ao sair do monstruoso aeroporto de Pequim foram os carros. Ok, antes foi  o tamanho do aeroporto e a quantidade de gente. O aeroporto de Pequim é o segundo mais movimentado do planeta, com 44 milhões de passageiros por ano. Mas, sim, os carros. Primeiro, na “periferia”, vimos uma quantidade incrível de Santana da Volks, conhecido lá como Vista – ele é o bestseller do país. Depois, quando chegávamos aos anéis mais centrais, carros ainda melhores e mais novos. Bons. Quero dizer: muito bons. Considere, por exemplo, que os oficiais do Partido Comunista preferem Audis, e a empresa alemã vendeu 64 mil carros lá no ano passado – mais do que a Alemanha. Todos carrões, nada de compactos – sempre de marcas gringas. O Cruze, carro da GM que custa a partir de R$ 67.900 no Brasil, vendeu 23 mil unidades na China. Todos os carros da JAC Motoros totalizaram 16,407 unidades. São, de todo modo, números monstruosos.

“Vocês deviam pensar que todo mundo andava de bicicleta”, explica a guia chinesa, vendo a nossa surpresa, naquele engrish engraçado, “mas a primeira coisa que a pessoa faz quando ganha mais dinheiro é comprar um carro. E nós preferimos os importados.” Mais ou menos como a ascensão da classe C no Brasil, mas de maneira mais rápida, dramática e massiva. Afinal, estamos falando de um país com 1,3 bilhão de pessoas. E, bom lembrar, quando eles falam “importados” normalmente estão falando de marcas. A maioria é produzido na China, por empresas chinesas, num complicado esquema com estatais. Mas isso é outro papo.

O fenômeno do carro é relativamente novo. Enquanto o país era mais fechado e não havia investimento externo, os chineses se viravam com as magrelas mesmo. Mas é de se esperar que a população de um país que cresce ao ritmo de 10% ao ano por uma década tenha os salários aumentados em igual medida. Considerando que a simples possibilidade de ter uma empresa grande é algo recente, dos anos 80, é incrível que hoje existam pelo menos 1 milhão de milionários na China (no Brasil, há 155 mil) – e a média de idade deles é 33 anos, daí a preferência por carrões, gadgets e roupas de luxo. E a adoração por objetos de status não é privilégio dos muito ricos. Pergunto a uma funcionária da Huawei quantos meses de salário de um funcionário da empresa são necessários para comprar o carro zero mais básico à venda. “Uns 2 meses”. Ficamos um pouco chocados. Ela completa: “Mas é um carro bem barato mesmo. Como é no Brasil?” Tento fazer as contas e explico que não existe o conceito de “carro barato” no Brasil. Tenha em mente que a Huawei tem uma boa quantidade de engenheiros, quase metade trabalha em pesquisa, então não estamos falando dos sub-salários do chão de fábrica em muitas montadoras de gadgets (chegaremos lá), mas ainda assim, impressiona.

Não é que os carros sejam estupidamente baratos – na média eles são um bocadinho mais caros que nos Estados Unidos, especialmente os de luxo. Mas, de novo, o carro é um sinal de status importante para os chineses. A quantidade de veículos na China aumentou em 20 vezes nos últimos 10 anos, e a expectativa é que em 2025 os chineses tenham mais carros que todos os outros países do mundo somados no ano 2000. É claro que há alguns efeitos colaterais para essa obsessão chinesa: há a poluição, e o trânsito de Pequim consegue ser pior do que o de São Paulo, especialmente pela quantidade de motoristas malucos fazendo conversões que seriam proibidas em qualquer outro lugar do mundo. E o governo já está na fase de implantar medidas restritivas, como o rodízio e limitação de emplacamentos, impostos sobre combustíveis e investimentos pesados em transporte público. A passagem de ônibus em Pequim, por exemplo, é fortemente subsidiada: os coletivos são novos e custam cerca de 10 centavos de Real.

Mas ok, chega de carros – um dia faço algo para o Jalopnik específico sobre isso. A questão é que o luxo não é restrito às ruas. Perambulando por um pequeno shopping em Shenzen, achei uma loja de produtos para audiófilos que tinha esta embasbacante “vitrola” da TransRotor:

O preço: 3.200.000 Yuans, o que dá cerca de 950 mil Reais. Na mesma loja, vi caixas acústicas de 30 ou 100 mil Reais. A loja era bastante grande e tinha cerca de 8 salas para experimentar sets específicos. Nunca vi algo parecido em escala, especialmente algo tão específico. Ainda no quesito audiófilos, achei em uma galeria de Hong-Kong uma loja que vendia apenas válvulas (para amplificadores valvulados McIntosh). No mesmo dia, encontrei lado a lado em um shopping de 9 andares uma loja da Hassellblad e outra da Leica – nenhuma câmera nas lojas custava menos de R$ 15 mil. Em minhas andanças pelos EUA, nunca achei uma loja que vendesse o meu fone de ouvido favorito, o Westone 4. Afinal, é um produto de produção razoavelmente limitada para um público específico e razoavelmente caro. Mas em Hong Kong, andando por uma rua cheia de eletrônicos, achei 5 lojas que vendiam toda a linha da Westone, com a caixinha de “revendedor autorizado”.

Na China, as coisas para ricos são desproporcionalmente grandes. As lojas de marcas luxuosas como Louis Vuitton, Chanel ou Cartier, além de gigantes, chegam a ter filas nas portas, como vi em Hong Kong (que é e não é da China, e de todo modo é para onde muitos chineses vão, já que tudo lá é mais barato). A obsessão deles por coisas caras e brilhantes é tamanha que calcula-se que até 2020 a China tenha 46% do mercado de luxo do mundo.

A carteira mais barata na Cartier de Hong Kong custava R$ 1.100

Mas é claro que as coisas de alto luxo são para um parcela pequena – ainda que crescente – da população. E quanto às coisas caras mas não estupidamente caras? Peguemos os gadgets. Considerando que a expressão “xing-ling” é basicamente sinônimo de cópias baratas chinesas e MPX, eu fiquei bastante impressionado com a prevalência (ao menos nas grandes áreas urbanas) de gadgets legítimos, ou a pequena quantidade de imitações. Há muita gente exibindo Nokias coloridos, já que os finlandeses são estupidamente fortes ali (a enorme loja em Xangai com um N9 na frente estava cheia), a Samsung está ganhando espaço velozmente e, mais do que qualquer outra, a Apple é uma marca bastante querida pelos chineses – em qualquer banca de jornal ou livraria a biografia de Steve Jobs tinha destaque.

Livros em banca de rua de Hong Kong

E a recíproca é verdadeira. No último trimestre, a Apple faturou quase 4 bilhões na “Grande China”, um crescimento de quase 600%. Em Hong Kong, uma mulher me diz que “quem não tem iPhone está out”, e no mais famoso mercado de rua do país, há uma quantidade surreal de capinhas para celulares, divididos da seguinte forma: 85% para iPhone 4/4S, 10% para iPhone 3GS e 5% para todas as outras marcas (especialmente Galaxy S II e N8). Tanto quanto carros luxuosos, a quantidade de roupinhas tem outro significado além de marketshare: mais do que em qualquer lugar que vi, quem tem iPhone quer se mostrar, como quem tem os carrões. É uma questão cultural recente, como apontou uma reportagem da Economist intitulada “O mistério do consumidor chinês”.

Depois de décadas de privação e conformismo, os consumidores chineses vêem os bens de consumo caros como troféus do sucesso. Em público, eles se mostram. Em suas casas, contam as moedas. A dona de um belo BMW novo vai rodar o quarteirão por meia hora para evitar pagar um estacionamento de 50 centavos. E ela vai hesitar em gastar muito em decoração de interiores, porque apenas a sua família irá ver.

Para ser bem sincero, não visitei casas de chineses ricos para verificar quão acertada é essa análise da revista britânica, mas considerando o histórico e que o PIB per capita ainda é relativamente baixo, faz sentido. Mas por outro lado, não dá para reduzir tudo na “busca pelo status”. Os chineses que vi usando o iPhone mexem nele compulsivamente – um hábito ocidental que eles não só abraçaram como exageraram no uso. Almoçar no KFC seria outro bom exemplo disso.

“Mas Pedro, e os xing-lings?” É bem verdade que eu passei por lugares de turista e cidades mais desenvolvidas, mas eu realmente não os vi na rua. Pelo que observamos, há certamente bem mais produtos eletrônicos falsos à venda na Paulista que nas principais ruas de comércio de Hong Kong ou Xangai. Sobram roupas de grife falsas, mas hiPhones? Não tanto – eles são facilmente reconhecíveis com a tela acesa (o ângulo de visão é sempre um lixo). Há um motivo para o crescente interesse dos chineses por coisas legítimas e de qualidade. “Os chineses não tem tanto dinheiro sobrando, então quando eles vão comprar um produto eles querem ter certeza que estão comprando o certo. E gastam muito dinheiro nisso”, explica Richard Brennan, um americano que foi investidor de vários startups no Vale do Silício antes de ir trabalhar na Huawei.

Xangai, mas poderia ser San Francisco

Por mais que tenhamos encontrado boas condições de trabalho por onde passamos, ruas e carros novos, é claro que nem todos os chineses – ou mesmo a maioria – está com dinheiro sobrando. Estima-se que hoje mais de 400 milhões de chineses vivem com menos de 2 dólares por dia. Mas a verdade é que nenhum país enriqueceu tão rápido em tão pouco tempo, e nenhum povo que conheci quis demostrar essa riqueza de maneira tão clara. Andar por Xangai é como andar por qualquer capital europeia rica – seja pelas marcas, roupas ou quantidade de Starbucks. O que isso significa para a indústria de eletrônicos? Que nenhuma guerra será completamente vencida se o território chinês não for devidamente conquistado.

(Fotos: Pedro Burgos. Foto do Salão do automóvel de Macau: China English News)

* O Gizmodo viajou para a China a convite da Huawei e agora acha que Xangai é das cidades mais sensacionais do planeta.

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