A jornada psicodélica de The Artful Escape
Publicado pela Annapurna Interactive (que publicou também Outer Wilds e Twelve Minutes), The Artful Escape traz a jornada de Francis Vendetti, um músico folk que vive sob o legado de seu tio Johnson Vendetti — este, uma cópia cuspida e escarrada Bob Dylan. O jogo traz discussões profundas sobre identidade e, como o nome adianta, uma dose pesada de alucinógenos. Toda a proposta orbita em torno da identidade belíssima do game, que tem visual e música espetaculares. A aleatoriedade da aventura é carregada de humor, com diálogos profundos e lições de vida estranhamente reais.
Às vésperas de uma efeméride, o protagonista é cotado para participar de um festival, o que o tiraria de sua zona de conforto. A princípio, Vendetti não quer carregar o fardo de seu tio. Mas basta a chegada de seres intergalácticos para mudar sua cabeça.
Isso serve de catapulta para que o personagem leve quem joga para conhecer esse universo rico. São três planetas principais, divididos em três atos distintos. Basta poucos minutos para você se sentir motivado a explorar e aproveitar cada segundo. No meu caso, houve um esforço extra de querer pegar todas as conquistas – que, por sinal, são bastante simples.
Artful Escape trata com cuidado especial os detalhes alinhados que permeiam seu forte enredo. Encontrar sua música e “encontrar a si mesmo” no Universo são os temas que mais permeiam o game, sempre partindo da ótica de Vendetti. Escolhas de diálogo e certas liberdades dadas ao jogador, ainda que tudo permaneça bastante linear, garantem uma boa imersão no universo, e gerem breves momentos de reflexão.
Vemos uma distinção muito clara entre o que o personagem pensa de si, do mundo em que vive e de todos os novos locais que visita. Aos poucos, entendemos o que cada um também espera dele. A fuga do lugar comum (daí o “Escape” do título) é coerente com cada elo de sua estrutura. Tudo funciona em harmonia, bem como cada etapa das viagens pelo cosmos de Francis.
A jogabilidade, por outro lado, não poderia ser mais tradicional: quem jogou Super Mario sabe o que esperar. É um jogo de plataforma, em que você pula e se movimenta da esquerda para a direita e vice-versa — e, ocasionalmente, tocando guitarra. A qualquer momento, você também pode sacar o instrumento e improvisar (basta segurar um botão) — harmonizando com literalmente todas as trilhas sonoras, em qualquer planeta.
Uma mudança de jogabilidade curiosa é quando você encontra as jam sessions. São minigames em que você precisa repetir certa sequência de botões indicada pelas criaturas que encontra – que não oferecem muita dificuldade para quem brincou de Genius quando era criança. O jogo de memorização não quebra tanto o ritmo de Artful Escape, mas pode ser entediante e frear a imersão do jogador que prefere se entregar ao restante da experiência audiovisual.
Dentre as referências visuais, para além das citadas inspirações psicodélicas, há também referências do mundo da sétima arte. Ganham destaque aqui certos acenos a Stanley Kubrick (inclusive referências a 2001: Uma Odisseia no Espaço e Nascido para Matar).
A beleza dos traços, ora lembrando colagens modernas de artistas digitais, foi tão comovente que me vi obrigado a lotar o armazenamento do Xbox com capturas de tela, resultando em agradáveis (80, ou talvez mais) papeis de parede. Não me arrependo.
As composições autorais, que harmonizam com a trilha de fundo, são um show à parte. Toda a trilha sonora, aliás, é guiada com variedade de gêneros, a depender de onde/quando o protagonista está. The Banks of the River are Lined with Gold abre o jogo e pavimenta o caminho para o que virá.
Em termos de imersão, um adicional interessante é a possibilidade de personalizar Francis e batizar seu alter ego a partir de certo ponto da jornada – independente do gênero, seja binário ou não-binário. Nos diálogos com outros personagens, seu nome é substituído por um riff de guitarra, a saída mais cômica e criativa possível para quebrar esta barreira entre criação e jogador.
Durante toda a jogatina de The Artful Escape, que leva pouco menos de 5 horas até sua conclusão, fica evidente que o estilo casual se aproxima de outros jogos independentes, que tenta mais parecer um “filme interativo” e uma “experiência imersiva” do que um videogame em si. Prova disso é você não poder falhar as jams; caso erre a sequência e toque uma nota errada, a criatura que encomendou o desafio limita-se a repetir para você tocá-la de novo.
Não creio que esse seja um grande demérito a Artful Escape. Porém, a ausência de surpresas nessa jogabilidade chapada (sem trocadilho intencional) pode desinteressar o público menos casual. A soma das metades resulta em um título criativo, atravessando as barreiras do tempo e espaço – assim como a música é mestre em fazer.