Adeus a Just Fontaine, maior artilheiro numa só Copa – e por que seu recorde é quase inalcançável
Qual foi o maior número de gols que Pelé marcou numa única Copa? Seis, em 1958. E Ronaldo Fenômeno? Oito, em 2002. E Messi? Sete, em 2022. E o artilheiro de 2022? Mbappé enfiou oito. Esses números tornam ainda maior a façanha do francês Just Fontaine com seus 13 gols só na Copa de 1958. O recordista morreu nesta quarta, 1º de março, em Toulouse, França, aos 89 anos (faria 90 em agosto).
A cada Copa que passa, mais a marca de Fontaine parece imbatível. Afinal, nem mesmo os monstros sagrados acima citados fizeram cócegas nesse recorde nos 16 mundiais disputados nos quase 65 anos desde então. O que mais se aproximou foi o alemão Gerd Mülller, que marcou dez gols em 1970.
E olhe que, desde 1974, os artilheiros podem disputar sete jogos no torneio, um a mais que o francês.
Mesmo na soma geral de Copas a artilharia de Fontaine é páreo duro. O alemão Klose levou quatro mundiais para marcar 16 gols. Ronaldo fez seus 15 em três (em 1994 ele não entrou em campo). Gerd Müller estufou 14 redes em duas. Messi precisou de cinco para chegar aos mesmos 13. Os 12 gols de Pelé foram em quatro mundiais, os 12 de Mbappé em duas.
A rigor, não dá para dizer que Fontaine jamais será alcançado. Recordes do esporte nascem para cair algum dia. Basta ver o exemplo de outras célebres marcas “imbatíveis” em outros esportes.
No tênis, os 12 títulos de torneios Grand Slam que o australiano Roy Emerson alcançou em 1967 levaram 33 anos para serem superados pelo americano Pete Sampras, que depois encerrou a carreira com 14. Mas, na última década, três tenistas pulverizaram esses números: Novak Djokovic e Rafael Nadal têm 22 e Roger Federer chegou a 20 Grand Slam.
Na Fórmula 1, os cinco títulos do argentino Juan Manuel Fangio entre 1951 e 1957 pareceram uma meta insuperável. Pelo menos igualar o penta era uma obsessão de Ayrton Senna.
Fangio teve esse recorde intocado por 44 anos, até o alemão Michael Schumacher igualar os cinco títulos em 2002 – e ampliou para sete em 2003 e 2004. E, em 2020, o inglês Lewis Hamilton igualou os sete títulos de Schumacher.
Convocado às pressas
Falemos da carreira de Fontaine. Nasceu em 18 de agosto de 1933 em Marrakesh, no Marrocos – que então era colônia francesa e só se tornaria independente quando Fontaine já era craque. Cresceu em Casablanca e, aos 17 anos, começou a jogar por um time local, o USM Casablanca. Fez 68 gols em três temporadas como amador.
O rapaz despertou a atenção de clubes franceses e, em 1953, foi contratado pelo Nice e tornou-se profissional. Ficou três anos e marcou 51 gols.
Marroquino de nascimento mas cidadão francês, ele estreou pela seleção europeia em dezembro de 1953, numa goleada de 8 a 0 sobre Luxemburgo pelas Eliminatórias da Copa de 1954.
Fontaine não se intimidou e marcou três gols. Mesmo assim, não foi chamado para o mundial na Suíça. E ficou longe da Les Bleus por um tempo. Voltaria em um jogo em 1956 e outro em 1957.
Em 1956, Fontaine foi contratado pelo melhor time da França na década. O Stade de Reims tinha acabado de ser vice-campeão da primeira Copa da Europa de Campeões (atual UEFA Champions League) ao perder a final para o Real Madrid por 4 a 3 em Paris. E seu principal craque Raymond Kopa foi vendido para o próprio Real após o jogo.
Fontaine se encaixou bem no time de toque de bola rápido e ofensivo do técnico Albert Batteux – que também era o treinador da seleção francesa. Na temporada 1956-57, fez 31 gols. Na seguinte, 39 gols nos títulos do campeonato e da copa da França.
Em 1958, expectativa pela Copa. Em março, Fontaine fez um gol no empate de 2 a 2 com a Espanha num amistoso preparatório. Porém, ele ficou de fora da lista de 22 jogadores da França para a Copa do Mundo, mesmo com o treinador sendo de seu clube.
Mas, se existem predestinados, Fontaine era um. A poucos dias da Copa, o atacante René Bliard, também do Stade de Reims, se contundiu e foi cortado. Aí sim o técnico Batteux chamou seu outro atacante no clube.
Gols em todos os jogos
De desprezado na convocação, Fontaine entrou como titular já na estreia na Copa. Com o genial meia-atacante Kopa enfiando bolas certeiras na área, Fontaine marcou três gols nos 7 a 3 sobre o Paraguai.
Contra a Iugoslávia, a França perdeu por 3 a 2. Mas Fontaine foi o autor dos dois gols.
Diante da Escócia, a França se classificou para o mata-mata ao vencer por 2 a 1. Lançado por Kopa, Fontaine marcou o segundo.
Nas quartas-de-final, os franceses esmagaram a Irlanda do Norte por 4 a 0. O segundo e o terceiro foram de Fontaine – um num cruzamento, outro driblando um irlandês na entrada da área e finalizando.
A semifinal foi contra o Brasil, que já abriu o placar aos 2 minutos com Vavá. Aos 9, Fontaine dominou uma bola enfiada para ele na área, limpou o goleiro Gilmar e empatou. Foi o primeiro gol que a Seleção Brasileira sofreu naquela Copa. Apesar do susto, o Brasil venceu por 5 a 2.
Restou a disputa de 3º lugar contra a Alemanha Ocidental, campeã de 1954. E o jogo tradicionalmente despretensioso em qualquer Copa serviu para Fontaine entrar para a história.
Ele marcou quatro vezes, chegou aos 13 gols no torneio e superou com sobras o recordista anterior (de uma só Copa e na soma de todas), o húngaro Sándor Kocsis, autor de 11 gols em 1954.
Vale observar: Fontaine poderia ter feito mais que 13. Ele acertou duas bolas na trave contra a Escócia. E teve a chance de cobrar um pênalti contra a Alemanha, mas cedeu a honra para Kopa, que converteu.
Despedida precoce
Fontaine regressou da Suécia como um astro internacional do futebol. E a boa campanha da França na Copa embalou o Stade de Reims. O clube ostentava outros destaques da seleção como Jonquet, Penverne, Piantoni e Vincent, e novamente chegou à final da Copa da Europa em 1959. Novamente contra o Real Madrid.
E, como em 1956, novamente deu Real na decisão: 2 a 0. Como consolo, Fontaine foi o artilheiro do torneio com 10 gols.
Curiosamente, se três anos antes o craque Kopa trocou o Reims pelo Real após a final europeia, desta vez ele fez o caminho de volta. A combinação de Kopa e Fontaine no Reims era tentadora. E, quanto jogaram juntos, foram bem.
Mas o script saiu do controle a partir de março de 1960, quando Fontaine sofreu fratura dupla numa perna. Recuperou-se e voltou ao time. Mas quebrou a perna de novo em janeiro de 1961.
Após essas fraturas, Fontaine nunca mais teve o mesmo rendimento em campo. E passou a sofrer com contusões em sequência.
Entregou os pontos ao final da temporada 1961-62. E se aposentou do futebol precocemente a um mês de completar 29 anos. Muito jovem, mesmo para aquela época em que os jogadores paravam cedo.
“Professor” Fontaine
Em 1967, Fontaine foi indicado para ser técnico da seleção da França, sua primeira experiência na profissão – algo que a CBF imitaria em 1990 com Falcão e em 2006 com Dunga.
Como técnico de Les Bleus, Fontaine não durou nem seis meses. Em março, perdeu por 2 a 1 para a Romênia. Em junho, levou 4 a 2 da União Soviética. Detalhe: os dois amistosos foram em Paris. A Federação Francesa agradeceu pelos serviços prestados e mandou Fontaine procurar novos desafios.
Ele persistiu na profissão de treinador. Entre 1968 e 1969, pegou traquejo no comando do clube amador Bagnères-de-Luchon. Depois, trabalhou como caçador de talentos para o Toulouse.
Em 1973, assumiu o Paris Saint-Germain, seu primeiro clube profissional como diretor técnico. Levou o clube, fundado em 1970, para sua estreia na primeira divisão na temporada 1974-75.
Mas o PSG daquele tempo era um time modesto, bem longe do esquadrão bancado pelos milhões vindos do Catar de hoje em dia. E Fontaine foi embora em 1976, sem títulos de primeiro nível.
Fontaine ainda treinou o Toulouse na Divisão 2 na temporada 1978-79 e assumiu a seleção de Marrocos em julho de 1979. Chegou bem perto de classificar o país para a Copa de 1982, mas perdeu a vaga em decisão direta com Camarões, que venceu as duas partidas.
Foi a última experiência de Fontaine como técnico. Nos 41 anos seguintes, ele se contentou em ser tratado com todas as honras como o que era: um dos personagens-símbolo das Copas do Mundo.