A campanha #AgoraÉqueSãoElas foi criada por Manoela Miklos e sugere que homens cedam seu espaço para que mulheres falem sobre seus direitos e questões relacionados a gênero. O Gizmodo Brasil resolveu participar com a publicação de artigos de mulheres que atuam na área de tecnologia e que têm feito a diferença.
A autora de nosso quarto e último texto da série é Thais Weiller*. Ela trabalhou na produção de vários games e, abaixo, conta um pouco de sua experiência neste mercado.
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Eu gostaria de falar na área de games está tudo legal, que homens e mulheres têm as mesmas oportunidades e tratamentos, e que não há a necessidade de se escrever um texto todo sobre a desigualdade de gênero na nossa área. Eu queria mesmo. De verdade. Mas nem todos os sonhos se tornam realidade na velocidade de um buffer.
Mas enquanto você lê esse texto, um cara desequilibrado está atacando com mensagens de ódio e ameaças vazias várias garotas que tiveram a ousadia de escrever sobre ou de fazerem jogos. Uma e-atleta está recebendo um convite público para um ato sexual no meio do seu streaming. Parece assustador, não? Pois é: para nós, é só mais um dia e não há nada de novo no front.
Ambiente de trabalho
Posso falar com mais certeza de como é trabalhar com jogos, como é chegar todo dia em um escritório de 40 pessoas em que só mais três são mulheres. Afinal, são mais de cinco anos fazendo exatamente isso. Todas as pessoas com quem você trabalha são maravilhosas, gostam das mesmas coisas que você, jogam os mesmos jogos que você e tudo mais.
Apesar disso, são comuns bolhas de ambiente. E sempre rolam aquelas conversas de quem são “gostosas””,”barangas”, “vadias” e sobre “quem é o homem da relação”. É claro, às vezes, homens usam termos equivalentes para tratarem amigos, mas não com a mesma frequência e não com a mesma riqueza de detalhes. No entanto, como em média só 20% são mulheres, e se eles gastam mais tempo falando delas, isso dá muito tempo para cada uma em relação ao tempo que se passa falando sobre qualquer cara.
Esse tipo de conversa é o prelúdio para algo pior, que é a falta de respeito no próprio ambiente profissional. Quantas vezes um colega passou por cima do trabalho de uma mulher só por que era mulher? Já aconteceu comigo de um dos caras que eu gerenciava simplesmente ignorar o que eu havia dito e ordenar para outro cara fazer um trabalho para ele. Na minha cara. Na minha frente. Ele faria o mesmo com um homem? Conhecendo o cara, eu sei que não. Daí a gente tem que falar mais alto. Acontece.
A crítica só por ser mulher
Fora do trabalho, nas interwebs, as coisas não ficam muito melhores. Já viram a quantidade de comentários em textos como este com o conteúdo que se resume a “nem li, mas é tudo choro das feminazis“?
Esses dias postei no meu Facebook um texto sobre as desculpas ridículas que desenvolvedores de jogos usam para justificar a nudez de personagens femininos. Não era um texto anti-nudez, inclusive o texto não criticava em nada a nudez, mas sim incentivava os desenvolvedores a simplesmente serem mais honestos quanto ao seus motivos, tipo “colocamos minas nuas porque vende, porque o jogador gosta“. Fim.
Pois não é que, do nada, apareceram guardiões da verdade mercadológica afirmando que o texto era feminazi, que os desenvolvedores podem fazer o que querem e que nudez é liberdade de expressão, batendo boca por literalmente horas com meus amigos nesse assunto. Aliás, esses guardiões nem sequer eram meus amigos, só viram a postagem e resolveram ir lá defender a sua liberdade de xingar um texto sem ter lido. Defendendo coisas que estavam no próprio texto. Sério.
E isso não é nem o problema mais grave. Também existem os casos patológicos de pessoas que gostam apenas de perseguir e discordar de mulheres online, e embora isso seja comum em todas as áreas em jogos parece ter contornos mais perversos. A Anita Sarkeesian é uma prova clara como uma mulher com uma opinião sobre jogos pode receber ameaças de estupro, assassinato e bomba só por defender essa opinião online, mas ela não é a única.
Aqui mesmo no Brasil, há pessoas doentes o suficiente para perseguir garotas da área com ameaças semelhantes, criando fakes para difamar seus amigos, enchendo o saco com perguntas escrotas e que criam campanhas de difamação (em sites que ninguém vai ler, mas ainda sim, algo meio irritante). Para que isso? Eu não sei também, mas acho que se há mulheres na internet com opiniões, essas pessoas acreditam piamente que isso é algum tipo de ofensa.
A polícia nem sempre consegue agir nesses casos com a mesma velocidade que o Twitter tem para deletar os fakes, então muitos desses caras malucos continuam por aí. Enquanto isso, nós temos que tomar mais cuidado com o que dizemos, onde dizemos e quem adicionamos como amigos.
O “problema” de ser garota jogando online
Por último, há o abuso que garotas sofrem em jogos online simplesmente por que quererem jogar. Imagine só, você tá lá na sua casa, é uma sexta a noite, você quer dar uma relaxada depois de um dia estressante no trabalho, liga o DOTA e no meio da partida os caras do seu próprio time começam a te xingar e ameaçam fazer um gang bang em você. E você só queria jogar um DOTinha, droga.
Não sou uma especialista nisso já que prefiro não jogar online com desconhecidos justamente por experiências ruins no passado, mas não me faltam exemplos de amigas. Garotas que apenas estavam querendo jogar uma partida online para descontrair ou que são e-atletas reconhecidas. Todas elas, às vezes, encontram no meio da jogatina caras escrotos que se acham no direito de xingar suas habilidades apenas pelo gênero ou ameaçá-las de violência sexual. Afinal, elas estão lá por isso, né? Não é para jogar, se divertir e ter um momento de descontração ou desafio, elas só jogam pela atenção. Aham.
No fim, muitas garotas desistem de jogar online ou começam a adotar a política de sem microfone e gamertag de gênero ambíguo. As que não adotam nenhuma dessas táticas sofrem diariamente com isso.
Quando falo sobre os tipos de abusos que mulheres passam na nossa indústria, muitos homens amigos meus não entendem, acham que é exagero. E, realmente, é compreensível que eles não percebam algo pelo qual nunca passaram. Mas, frequentemente, por não pensarem, eles acabam perpetuando esse mesmo abuso sem sequer notar. Isso mesmo, muitas das situações desconfortáveis para nós são mantidas pela falta de noção de colegas de trabalho ou seguidores online. Caras, vocês não têm que usar fitinha rosa em outubro ou usar camiseta escrito Cuties Killing Games, mas só de perceber quando uma conversa está indo pro lado preconceituoso já ajuda muitão, já é um primeiro passo.
No fim, o abuso moral a mulheres na área de jogos é tão corriqueiro, tão parte do dia a dia, algo tão normal que para não nos ofendermos com tanta frequência, acabamos construindo muralhas ao nosso redor.
Essas paredes podem tomar forma e nos levam a desistir de modos online abertos ou de só expressarmos nossas reais opiniões em grupos fechados de garotas, ou ainda de nos tornamos mais frias e grossas no trabalho para tentar sobreviver a esse ambiente. Essas muralhas funcionam a curto prazo, mas também criam barreiras mais altas para chegarmos no dia em que textos como estes não serão mais necessários. Com o abuso, nós nos isolamos para nos machucarmos menos, mas ao nos isolarmos, também aumentamos as diferenças.
* Thais Weiller, 27, é mestra pela ECA-USP. Sua tese abordava game design e o jogador. Está no mercado desde 2010. Fez parte das equipes por trás de games como Oniken, Odallus e Finding Monsters Adventures.
Imagem do topo: Pixabay