Al Jaffee (1921-2023): a lenda viva da revista MAD torna-se lenda eterna

Artista foi uma espécie de faz-tudo da icônica revista de humor americana, e fundou duas de suas seções mais conhecidas. Jaffee morreu aos 102 anos na última segunda-feira (10)
Al Jaffee, cartunista da revista MAD

Quando alguém muito notório deixa de ser uma lenda viva? Quando torna-se lenda eterna, como aconteceu em 10 de abril com o genial cartunista americano Al Jaffee. Ele morreu aos 102 anos de falência múltipla de órgãos por causas naturais.

Lá se vai o ritual de topar na internet com a celebração de mais um aniversário de Jaffee e se espantar com a longevidade e o vigor – algo parecido com o que acontecia no Brasil em relação ao arquiteto Oscar Niemeyer, que só se rendeu ao inevitável a dez dias de completar 105 anos, em 2012.

Al estava apenas em seu terceiro ano de aposentadoria. Só parou de trabalhar na histórica revista MAD em 2020, após 65 anos (com um breve hiato em 1957/58) no emprego.

Jaffee foi um gênio do humor, que fez a história da MAD em seu auge entre as décadas de 1950 e 1970. O sarcasmo, a esperteza, o olho clínico e cínico para fraquezas e hipocrisias humanas era dominado por ele e seus colegas na “gangue de idiotas de sempre”.

A gangue tinha outros pesos-pesados com o mesmo senso de humor: o criador e primeiro chefe da revista Harvey Kurtzman (outro gênio) e mestres do desenho e do texto como Don Martin, Will Elder, John Severin, Jack Davis, Mort Drucker, Antonio Prohías (criador de “Spy vs Spy” na revista), Sergio Aragonés e Dave Berg.

MAD Men

A revista MAD surgiu em 1952 e deu um chacoalhão no cérebro de muitos adolescentes em tempos muito conservadores nos Estados Unidos. Zoava com praticamente tudo que aparecesse pela frente, de filmes a coisas corriqueiras do cotidiano.

Até o fundador e editor Harvey Kurtzman (tão temperamental quanto brilhante) brigar com a editora EC e sair em 1956, MAD foi mais histórias em quadrinhos puras no formato. O sapeca personagem-símbolo de dentes separados Alfred E. Neuman foi criado em 1954, mas mal aparecia na Era Kurtzman.

Alfred E. Neuman em todas as capas, seções mais fixas, as sátiras de filmes com caricaturas dos atores e atrizes viriam na administração de Al Feldstein (1956-1985), que substituiu Kurtzman.

A influência de MAD só cresceu. O pico de vendas ocorreu entre 1973 e 1974, com dois milhões de cópias vendidas de cada edição. Imagina-se que cada jovem leitor da revista em seu auge tornou-se um adulto questionador e irreverente.

Questionador e irreverente eram qualidades fundamentais de Al Jaffee, para voltarmos a falar dele. Ele ingressou na MAD em 1955 e saiu em 1957 para acompanhar Kurtzman, seu antigo colega de escola de artes, em suas aventuras com Hugh Hefner, o dono da revista masculina Playboy, a sensação da época.

Quadrinista frustrado mas ainda amante dessa arte, Hefner propôs a Kurtzman fazer “uma nova MAD” em sua editora. Daí surgiram, entre 1957 e 1958, as revistas Trump, que durou pouco, e Humbug, que também teve morte precoce.

No olho da rua, Jaffee arriscou ligar para Al Feldstein (outro ex-colega de escola de artes) na MAD. Para sua surpresa, Feldstein o chamou de volta.

Daí em diante, Al Jaffee foi um faz-tudo para a MAD. Fazia cartuns que iam do humor corrosivo ao pastelão mais inocente, escrevia apenas textos para artes de outros, desenhou capas…

E criou duas das seções mais conhecidas da história da revista – “Respostas Cretinas para Perguntas Imbecis” (“Snappy Answers for Stupid Questions”) e a “Dobradinha Mad” (“Mad Fold-in”).

Sempre na terceira capa (ou verso da contracapa) de cada edição, a “Dobradinha Mad” era fascinante. Jaffee conseguia bolar uma imagem de página inteira que, ao se dobrar o terço externo da folha para ocultar o terço do meio, criava uma outra imagem ao se unir ao terço interno.

O desenho que surgia nessa dobradura respondia a uma pergunta feita na página totalmente aberta. Haja cabeça para bolar tudo isso. E todo mês.

E a dobradura continha as sátiras mais agudas e críticas de Jaffee. Presidentes, militares e a Guerra do Vietnã, o mundo do entretenimento e figuras questionáveis foram alvos frequentes do resultado final das Dobradinhas.

Ele viveu 102 anos, mas jamais confiou no mundo adulto. Numa entrevista à revista americana Vanity Fair em 2017, o jornalista Eric Spitznagel lembra que o cartunista disse para sua biografia que desde cedo se dedicou a “provar que os adultos eram uns merdas”. Isso seria a missão de seu trabalho.

Jaffee respondeu: “Pode ser. Tem dias que acho que fui muito severo. Mas aí pego um jornal e leio sobre o que está acontecendo no mundo e penso: ‘É, eu estava certo’ “.

Pirações familiares

A desconfiança em relação a figuras de autoridade vem da infância de Jaffee. Ele nasceu com o nome Abraham Jaffee em 1921 na cidade de Savannah, no estado americano da Geórgia. Seus pais eram um casal de imigrantes judeus da Lituânia.

O pai estava adaptado ao modo americano de viver e trabalhava como gerente numa loja. Mas a mãe tinha alguns parafusos a menos (na avaliação, com outras palavras, do próprio Al) e só pensava em sua Lituânia. Mais precisamente na cidadezinha natal de Zarasai, atrasada em tudo.

A senhora Mildred Jaffee encheu tanto a paciência com essa saudade da Lituânia que, em 1927, o marido Morris consentiu que ela voltasse para Zarasai com os quatro filhos.

Aos 6 anos de idade, Al Jaffee viu-se numa cidade com lamaçais chamados de rua, eslavos praticando anti-semitismo cruel com judeus como ele e outros fatores bem distantes dos EUA que ele tinha deixado para trás. Fora isso, estava sujeito às pirações da mãe, que trancava a prole num quarto para rezar sem ser incomodada.

Tantos maus-tratos e infelicidades deixaram uma marca permanente na personalidade e no humor de Jaffee. Que já dava sinais do que faria na vida. Apaixonado por quadrinhos, pedia em cartas que o pai enviasse alguns gibis americanos para ele na Lituânia.

Sentindo o estrago que a aventura lituana estava causando à formação de seus filhos americanos, Morris Jaffee perdeu a paciência e apareceu de surpresa em Zarasai em 1933. “Resgatou” três deles para a viagem de volta aos EUA. Al incluso.

O irmão que ficou com a mãe aguentou até 1940, quando também voltou para a América meses antes da invasão das tropas da Alemanha nazista. Nunca mais os Jaffee souberam de Mildred Jaffee. É dado como certo que ela morreu num campo de concentração por ser judia.

Àquela altura, Al Jaffee já era um desenhista profissional. Empregou-se na editora Quality Comics em 1941 e criou o personagem Inferior Man para o gibi “Military Comics”. Depois ainda trabalharia na Timely Comics, que anos depois se transformaria na editora Marvel. É claro que um dos colegas dele na Timely foi Stan Lee.

Al Jaffee teve a chance de ilustrar 65 momentos de sua vida e sua família para acompanhar o texto escrito por Mary-Lou Weisman na biografia “Al Jaffee’s Mad Life”, publicada em 2010.

O trabalho e a sensibilidade de Jaffee foram enaltecidos por um grande colega de profissão:
Art Spiegelman, autor da premiadíssima graphic novel “MAUS”.

“O que inicialmente aparenta ser uma autocaricatura do genial barbado vista em inúmeros cartuns de Al Jaffee na MAD se amplia para um vasto quadro de sobrevivência, trauma e uma família disfuncional que transita do Velho para o Novo Mundo e de lágrimas de riso para risos vindos de lágrimas. É uma biografia incômoda com uma tocante graphic novel escondida”, elogiou Spiegelman.

 

Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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