Anomalia climática afetou a Primeira Guerra Mundial e a pandemia de gripe de 1918

Frio e chuvas incomuns pioraram as condições nas frentes de guerra e intensificaram o espalhamento do vírus H1N1.
Um soldado canadense em Passchendaele, destacando as condições deploráveis ​​durante a batalha. Imagem: Canadian Great War Centre

Novas pesquisas publicadas no GeoHealth descrevem o impacto de uma anomalia climática de seis anos na Primeira Guerra Mundial e na pandemia de influenza de 1918-19. O clima incomum, que ocorreu de 1914 a 1919, incluiu chuvas torrenciais e temperaturas particularmente baixas, tornando a situação ainda pior, de acordo com o estudo, conduzido pelo cientista do clima e historiador Alexander More, da Universidade de Harvard.

Que o clima extraordinariamente horrível tenha piorado a guerra e a pandemia é inteiramente plausível, mas a nova pesquisa também propõe — embora especulativamente — que a anomalia climática fez com que a pandemia começasse ao alterar o comportamento migratório de patos, notórios portadores do H1N1, um tipo de vírus da gripe.

A Primeira Guerra Mundial é famosa por suas péssimas condições climáticas, especialmente ao longo da Frente Ocidental, que se estendia das praias do Canal da Mancha às montanhas suíças. Os soldados que lutaram na França e na Bélgica tiveram que enfrentar chuvas incessantes e um frio incomum, principalmente nas batalhas de Verdun, Somme e Passchendaele.

Soldados australianos passando por Chateau Wood, Bélgica, em outubro de 1917. Imagem: Wikimedia Commons

Os bombardeios constantes de ambos os lados criaram vastas áreas devastadas e, quando as chuvas vieram, esses campos torturados se tornaram perigosos lamaçais. Soldados presos em buracos de lama frequentemente precisavam de ajuda para escapar, mas alguns não tiveram tanta sorte.

Contando sua experiência em Passchendaele em 1918, o veterano canadense George Peakes disse: “muitos homens feridos escorregaram para os buracos de bombas e foram afogados ou sufocados pela lama pegajosa”.

O papel da lama ao longo da Frente Ocidental não deve ser subestimado. Ele criou condições perigosas, reduziu a mobilidade de soldados e cavalos, dificultou a movimentação de equipamentos como a artilharia e diminuiu a qualidade de vida em geral.

Na verdade, a chuva excessiva tornou a vida insuportável. Os soldados, em pé por dias na água, não conseguiam manter os pés secos, resultando em pé de trincheira, que é o termo usado ainda hoje para descrever essa condição dolorosa. Ao mesmo tempo, o frio incomum contribuiu para erupções de congelamento e deterioração ainda maior da saúde dos soldados.

E quando a guerra estava terminando, uma terrível pandemia estava começando. A pandemia de H1N1 de 1918-19 costuma ser chamada de “gripe espanhola”, o que é deselegante para os padrões modernos e também impreciso, já que cientistas e historiadores não sabem onde de fato essa pandemia começou. O que sabemos é que a doença ganhou força durante a primavera de 1918 e atacou com toda a força no outono do mesmo ano. No momento em que perdeu força, ao longo do ano seguinte, a pandemia havia resultado em algo entre 50 milhões a 100 milhões de mortos.

Pacientes com gripe em um hospital temporário no Kansas, 1918. Ilustração: Otis Historical Archives Museu Nacional de Saúde e Medicina

E assim terminou um período “de mortalidade sem precedentes em toda a Europa”, escreveram os autores em seu estudo. A equipe lançou sua investigação para ver se o clima durante a Primeira Guerra Mundial era realmente incomum e, caso positivo, se as condições ambientais desempenharam um papel na chocante mortalidade durante a guerra e a pandemia. Os resultados de seu trabalho sugerem que provavelmente sim.

Para começar, os pesquisadores extraíram um núcleo de gelo dos Alpes europeus, o que permitiu reconstituir as condições climáticas de 1914 a 1919. Esses dados foram então comparados às taxas de mortalidade na Europa durante o mesmo período, assim como relatos históricos de chuvas torrenciais nos campos de batalha da Frente Ocidental.

Os cientistas encontraram correlações entre os períodos de pico de mortalidade e períodos pontuados de temperaturas frias e chuvas fortes, ou seja, episódios climáticos incomuns durante os invernos de 1915, 1916 e 1918.

“Os dados apresentados aqui mostram que anomalias climáticas extremas, que foram captadas [nos núcleos de gelo] e reanalisadas, trouxeram influxos incomumente fortes de ar frio marinho do Atlântico Norte, principalmente entre 1915 e 1919, resultando em eventos de precipitação incomumente fortes, que exacerbaram a mortalidade total em toda a Europa”, escreveram os autores no artigo.

Esse tipo de anomalia climática, dizem eles, ocorre cerca de uma vez por século. O fato de ter acontecido durante a maior guerra que a humanidade havia visto até então, ao mesmo tempo que coincidiu com algumas das maiores batalhas da guerra, é um timing inacreditavelmente ruim.

Também é possível que esse clima terrível tenha dado início à pandemia, argumentam os autores. O excesso de precipitação, junto com o ar frio do oceano pairando sobre a Frente Ocidental, pode ter alterado os padrões migratórios dos patos-reais. Isso é significativo porque os patos-reais são “o reservatório primário [fonte] do vírus da influenza aviária H1N1”, de acordo com o estudo.

Assim, em vez de migrar para a Rússia como de costume, muitos patos selvagens permaneceram parados, perto de populações civis, militares e animais domésticos, especulam os autores. Por meio de suas fezes, esses patos podem ter contaminado fontes de água utilizadas por humanos e outros animais. Curiosamente, o excesso de chuva durante este período produziu mais fontes de água do que o normal, amplificando uma situação já ruim.

Como os autores escrevem, a resultante “interação de fatores ambientais, ecológicos, epidemiológicos e humanos” pode ter sido responsável pelo número exagerado de mortes em toda a Europa durante este período.

Essa teoria, de que os patos deflagraram a pandemia porque não conseguiram migrar, é super, super especulativa, como os próprios autores admitem.

“Não estou dizendo que essa foi ‘a causa’ da pandemia, mas certamente foi um potencializador, um fator agravante adicional a uma situação já explosiva”, disse More em um comunicado de imprensa da AGU.

No mesmo comunicado à imprensa, Philip Landrigan, diretor do Programa de Saúde Pública Global do Boston College, disse que é “interessante pensar que chuvas muito fortes podem ter acelerado a disseminação do vírus”.

Uma lição aprendida com a pandemia de COVID-19 é que “alguns vírus parecem permanecer viáveis ​​por períodos mais longos no ar úmido do que no ar seco. Portanto, faz sentido que, se o ar na Europa estivesse excepcionalmente úmido durante os anos da Primeira Guerra Mundial, a transmissão do vírus poderia ter sido acelerada”, disse Landrigan, que não estava envolvido no novo estudo. “Acho que é um estudo muito crível e provocativo que nos faz pensar de novas maneiras sobre a interação entre as doenças infecciosas e o meio ambiente”, acrescentou.

Este não é o primeiro estudo a ser publicado este ano afirmando que fatores ambientais tiveram influência em eventos históricos. Uma pesquisa publicada em junho apontou que o tempo terrível desencadeado por uma erupção vulcânica em 43 a.C. coincidiu com o fim da República Romana e do Reino Ptolomaico. A história acontece, mas às vezes os fatores ambientais podem desencadear outros eventos.

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