Por que um app de consentimento sexual só cria mais problemas do que resolve
A empresa holandesa de blockchain LegalThings anunciou em um comunicado de imprensa que estava desenvolvendo um aplicativo, o LegalFling, que, em teoria, poderia permitir que parceiros prestes a transar registrem aquilo com que concordam e de que discordam antes da relação. A empresa aponta que você pode marcar o que você topa ou não fazer “com um deslizar de dedo”. Esse é literalmente um recurso que aparece na temporada recém-lançada de Black Mirror, em que dois parceiros que recebem match concordam com o consentimento sexual deslizando o dedo na tela de seus dispositivos.
“Pedir que alguém assine um contrato antes de transar é um pouco desconfortável”, disse o CEO da LegalThings, Rick Schmitz, em um comunicado de imprensa. “Com o LegalFling, um simples deslizar de dedo para consentir é suficiente para justificar legalmente o caso.”
Essa é uma representação profundamente falha do consentimento sexual. Um contrato coberto prévio ao contato sexual sinaliza que o consentimento é simplesmente uma lista de controle única, em que, com uma aprovação inicial, tudo está bem. Consentimento, no entanto, é algo que acontece continuamente ao longo de um encontro sexual. Como aponta a RAINN, “dar consentimento para uma atividade, uma vez, não significa consentir um contato sexual aumentado ou recorrente”, e alguém pode querer retirar seu consentimento a qualquer momento durante atividades sexuais. As pessoas podem mudar de ideia — deslizar “okay” no smartphone previamente não deve pesar mais do que o desconforto de alguém durante um encontro sexual e, certamente, não deve ser considerado como um padrão legal mais alto.
O site do LegalFling reconhece que uma pessoa pode mudar de ideia durante o ato. “‘Não’ significa ‘não’ em qualquer momento. Estar desmaiado significa ‘não’ em todos os momentos”, diz a página de perguntas frequentes. “Isso é explicitamente descrito no acordo. Além disso, você pode retirar seu consentimento no app do LegalFling com apenas um clique.”
Eu, particularmente, tenho dificuldade de imaginar que pausar uma atividade sexual para abrir um aplicativo e ajustar as configurações seja mais fácil do que simplesmente comunicar para seu parceiro que você não está mais confortável com algo.
Em seu comunicado de imprensa, o LegalFling faz uma comparação de seu contrato de consentimento sexual com “enviar uma mensagem de WhatsApp que indica privilégios”. É imprudente, considerando que o consentimento é algo contínuo.
Martijn Broersma, membro da equipe do LegalFling, disse em um email ao Gizmodo que os “Live Contracts” criam uma prova de existência, o que significa que “ambas as partes terão uma versão imutável do consentimento/contrato explícito”. O contrato tem data carimbada, é firmado e então registrado na blockchain. Já que a blockchain é descentralizada, ninguém pode alterar o documento. O app não está disponível atualmente — a equipe ainda está trabalhando nele, segundo o site, e ele ainda passará por aprovação de Apple e Google
Aplicativos de consentimento não resolvem o problema de estabelecer consentimento sexual, mas, sim, ajudam indivíduos a cobrir seus vestígios depois do fato. Em um artigo no Motherboard,“The Problem with Sexual Consent Apps”, (“O Problema dos Apps de Consentimento Sexual”), a autora aponta uma passagem do livro Yes Means Yes! Visions of Female Sexual Power & A World Without Rape (Sim Significa Sim! Visões do Poder Sexual Feminino e Um Mundo Sem Estupro, em tradução livre), de Jaclyn Friedman: “As pessoas pensam em consentimento nos termos de ‘Preciso me proteger para que ninguém me acuse de estupro’. E, sinceramente, quando você aborda consentimento desse ângulo, este é um ângulo bem ‘estuprador’… se trata de se defender em vez de, de fato, estar presente para seu parceiro”. Isso torna partes do slogan do LegalFling — “transformamos os #metoo’s em #iFling’s” e “sexo seguro redefinido” — particularmente perturbadores.
O LegalFling certamente não é o primeiro empreendimento que se apoia na tecnologia como meio de indicar consentimento. SaSie e We-Consent também são apps projetados para estabelecer consentimento previamente. Vale apontar que os executivos principais de todas essas equipes são homens. Quando perguntado se havia alguma mulher ajudando no desenvolvimento do LegalFling, Broersma disse que “existem várias mulheres nos ajudando e dando suporte a nosso projeto”. Quando questionado sobre por que a atual página da equipe do LegalThings apenas lista homens, Broersma disse: “Nossa página da empresa é constantemente atualizada, e as mulheres não chegaram lá por não terem achado uma foto perfeita ainda. Elas foram muito exigentes com isso…”.
O conceito de usar tecnologia da blockchain para auxiliar no consentimento já circulou previamente em subreddits de criptomoedas, com um usuário até mesmo sugerindo, em 2015, usar a Ethereum e softwares de reconhecimento de voz “para codificar consentimento em relações sexuais”. Outro usuário sugeriu um serviço quase idêntico no /r/bitcoin há três anos: “Seria esse o futuro do sexo?”, escreveu o usuário, “ou eu fumei demais?”
“Sou completamente a favor de promover o diálogo sobre consentimento — isso é uma grande parte do meu trabalho —, mas esses aplicativos estão promovendo uma conversa errada e perigosa, uma que coloca o consentimento como irrevogável uma vez que concedido, sendo aplicada a qualquer ato sexual que alguém queira forçar que você faça algo, já que você consentiu com o ‘sexo’ como um conceito”, Friedman contou ao Lifehacker. “Promover essa ideia é mais perigoso do que não conversar sobre consentimento.”
Imagem do topo: LegalFling