A Clearview AI, startup responsável por uma controversa ferramenta de reconhecimento facial usada principalmente pela polícia, está enfrentando uma onda de reclamações legais em toda a Europa. A companhia é acusada por violações de privacidade e abuso da tecnologia, com base em documentos internos que mostram como funciona o algoritmo da plataforma.
As queixas partem de algumas organizações de privacidade e direitos humanos e foram encaminhadas a órgãos de vigilância em cinco países. As entidades alegam “ilegalidade sistêmica” no serviço da Clearview AI, sob a justificativa de que a startup guardou inúmeras fotos de cidadãos nos países da União Europeia e usou os conteúdos sem consentimento dos usuários, violando regras de proteções de privacidade nos locais afetados.
Entre as organizações que integram as reclamações estão a Privacy International, na França e Reino Unido; a Homo Digitalis, na Grécia; o Centro Hermes para Transparência e Direitos Humanos Digitais, na Itália; e o Centro Europeu de Direitos Digitais, na Áustria.
“As leis europeias de proteção de dados são muito claras quando se trata dos objetivos para os quais as empresas podem usar nossos dados”, disse Ioannis Kouvakas, diretor jurídico da Privacy International, um dos quatro grupos por trás das reclamações. “Extrair nossas características faciais exclusivas ou até mesmo compartilhá-las com a polícia e outras empresas vai muito além do que poderíamos esperar como usuários online”, completou.
“A Clearview parece interpretar a internet como um fórum homogêneo e totalmente público onde tudo está à disposição”, disse Lucie Audibert, da Privacy International, que vê as ações da empresa como uma ameaça aos “numerosos direitos e liberdades” possibilitados por uma web mais aberta e transparente.
As entidades afirmam que os órgãos reguladores têm até três meses para dar um parecer sobre as queixas.
Investigação na Alemanha
O processamento de dados pessoais da Clearview foi declarado ilegal este ano pela Autoridade de Proteção de Dados de Hamburgo (DPA), a segunda maior cidade da Alemanha. A decisão surgiu de uma reclamação feita por Matthias Marx, um cientista da computação alemão e membro do Chaos Computer Club, que diz que suas fotos foram usadas pela Clearview para gerar um perfil biométrico sem seu conhecimento ou autorização.
Marx soube desse processo ao enviar à Clearview uma solicitação de acesso do titular dos dados (DSAR, na siga em inglês), uma ferramenta legal na Europa que obriga as empresas a liberar cópias de dados pessoais armazenados para os usuários envolvidos. Em janeiro, depois de descobrir que a Clearview violou a lei, a DPA ordenou que a identidade biométrica de Marx fosse excluída.
Na época, a DPA rejeitou vários argumentos de defesa da Clearview, que negou que Marx tenha sido monitorado — apenas se limitou a dizer que o perfil biométrico foi gerado por meio de “algumas fotos [de Marx] disponíveis na internet”. O órgão ainda acusou a startup de armazenar não apenas imagens, mas dados precisos adicionais, uma vez que o banco de dados da Clearview arquivava histórico de localização de algumas fotografias de Marx.
Um detalhe importante: apenas a solicitação de remoção de Marx foi atendida. Com base nas leis de alguns países da Europa, cada usuário precisa entrar em contato com a Clearview e fazer sua reclamação individualmente.
Casos nos EUA
A Clearview utiliza um sistema de coleta de imagens públicas na internet, em especial as que são divulgadas em redes sociais, para alimentar seu banco de dados biométrico. A startup então vende o acesso ao software de inteligência artificial para agências e governos no mundo todo, que por sua vez utilizam o mecanismo para identificar os cidadãos.
A questão é que polícias e autoridades, principalmente nos EUA, têm feito uso discriminado do software da Clearview. Uma reportagem do BuzzFeed News constatou no início de abril que quase 2 mil órgãos públicos americanos usaram a ferramenta de reconhecimento facial da startup. Além disso, muitos agentes de segurança baixaram o app da Clearview e o usaram sem informar os superiores de seus respectivos departamentos.