Anfíbios subterrâneos produzem “leite” para alimentar filhotes
Texto: Letícia Naísa/Revista Pesquisa Fapesp
Em meados de 2007, uma equipe de filmagem do canal britânico BBC visitou o Instituto Butantan, em São Paulo, para captar imagens de anfíbios para uma série chamada Life in cold blood (Vida a sangue frio). Durante as gravações, uma cena intrigou os pesquisadores presentes: filhotes de cecílias – conhecidas como cobras-cegas, embora sejam mais aparentadas aos sapos – se aglomerando em volta da abertura cloacal da mãe (por onde nascem). Já se sabia que a prole se alimenta de uma camada da pele materna durante os primeiros meses de vida. Mas o comportamento visto no documentário despertou uma curiosidade: o que aqueles recém-nascidos buscavam na abertura cloacal?
Um grupo de pesquisadores do Instituto Butantan encontrou uma possível resposta, 17 anos depois: os filhotes de Siphonops annulatus são “amamentados” diariamente com um tipo de leite. “A mãe levanta a cauda e os filhotes chupam um líquido meio grosso que sai da abertura cloacal”, explica o biólogo Carlos Jared, do Laboratório de Biologia Estrutural do Butantan e autor do artigo que descreve esses resultados na edição desta semana da revista Science. “Nós coletamos esse líquido, analisamos e vimos que ele tem componentes parecidos com os do leite de mamíferos”, define o pesquisador, que foi supervisor do trabalho de pós-doutorado que originou o estudo. O artigo também descreve que os filhotes emitem som poucos minutos antes de serem alimentados, o que pode indicar um comportamento de pedido de alimentação.
Poucas espécies não mamíferas apresentam esse tipo de comportamento. Há registros de tipos de amamentação em algumas espécies de aranhas, baratas, peixes e aves, mas o fenômeno nunca havia sido registrado em anfíbios ovíparos como as cecílias. O leite identificado pelos pesquisadores do Butantan é composto sobretudo de lipídios e carboidratos e é secretado por glândulas que aumentam durante o período de cuidado parental, que dura de dois a três meses. “Não podemos chamar de glândulas mamárias, porque as origens evolutivas são muito diferentes, mas isso mostra como as cecílias se adaptaram de formas diferentes, ao longo do tempo, para sobreviver”, diz Jared.
Para ter certeza de que estavam entendendo o fenômeno, a equipe gravou o comportamento de 16 fêmeas de cecília por 242 horas ao longo de cerca de seis anos. Os animais estudados foram coletados em Ilhéus, na Bahia, uma região cacaueira onde as cobras-cegas são comuns em seu hábitat debaixo da terra. “Por ser um ambiente de difícil acesso, esse é um dos grupos de vertebrados menos conhecidos pela ciência”, afirma a bióloga Tamí Mott, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), uma das poucas especialistas do país nesses animais. No mundo, são conhecidas 222 espécies de cecílias, das quais cerca de 20% (39) são encontradas no Brasil. Esse tipo de animal é típico de regiões tropicais e depende da pele úmida, por onde faz boa parte da respiração.
Elas foram descritas pela primeira vez em 1822. O grupo do Butantan é um dos pioneiros no estudo de longo prazo das cecílias e descobriu que essa espécie tem uma glândula de veneno na base dos dentes e é capaz de inocular ao morder. Em 2006, a equipe também publicou um artigo na revista Nature mostrando como os filhotes comem pedaços da camada externa da pele materna, modificada nesse momento do cuidado parental. Esse comportamento, chamado de dermatofagia, ou skin-feeding, já foi identificado em outra espécies de cecília.
O registro da amamentação, no entanto, é inédito, assim como o som emitido pelos filhotes. “Há relatos de comunicação em algumas espécies em contexto de defesa, mas durante o cuidado parental é um achado espetacular”, comenta Mott. Para ela, o trabalho abre portas para novas frentes de investigação sobre a evolução desses enigmáticos anfíbios.
Projetos
1. Desvendando o cuidado parental nas cecílias: Implicações nutricionais e toxinológicas em Siphonops annulatus (nº 18/03265-9), Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular, Pesquisador responsável Carlos Alberto Gonçalves Silva Jared (Instituto Butantan), Investimento R$ 175.382,65.
2. O cuidado parental e a dermatofagia na cobra-cega Siphonops annulatus: Uma abordagem integrativa (nº 17/10488-1), Modalidade Bolsa de Pós-doutorado, Pesquisador responsável Carlos Alberto Gonçalves Silva Jared (Instituto Butantan), Bolsista Pedro Luiz Mailho Fontana, Investimento R$ 310.331,44.
Artigos científicos
MAILHO-FONTANA, P. L. et al. Milk provisioning in oviparous caecilian amphibians. Science. On-line. 8 mar. 2024.
KUPFER, A. M. et al. Parental investment by skin feeding in a caecilian amphibian. Nature. v. 440, p. 926-9. 13. abr. 2006.