Coleira com inseticida protege cão contra leishmaniose, mas deixa animais próximos mais expostos
Karina Ninni | Agência FAPESP
Estudo conduzido no interior de São Paulo indica que coleiras impregnadas com inseticida são capazes de proteger os animais que as utilizam contra a leishmaniose visceral, mas podem aumentar as chances de transmissão da doença para os cães não encoleirados que moram nas imediações.
A pesquisa foi conduzida por equipes do Instituto Adolfo Lutz (IAL), do Centro de Parasitologia e Micologia de São Paulo e do Centro Regional do IAL de Bauru, em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde de Bauru e pesquisadores da Saint Mary’s University, Nova Scotia, Canadá. Os resultados foram divulgados na revista Acta Tropica.
Causada por protozoários do gênero Leishmania, entre eles o L. infantum e o L. chagasi, a leishmaniose visceral é transmitida pela picada de fêmeas do mosquito Lutzomyia longipalpis (conhecido como mosquito-palha). No ambiente urbano, o cão doméstico é considerado o principal reservatório do parasita. Em humanos, o protozoário causa uma doença sistêmica e de evolução crônica, com sintomas como febre de longa duração, aumento do fígado e do baço, perda de peso e da força muscular, fraqueza e anemia. Se não tratada, pode levar a óbito em até 90% dos casos.
Na pesquisa, o grupo de cientistas usou ferramentas como sistema de informação geográfica (SIG), mapeamento e georreferenciamento para selecionar as áreas de intervenção e controle e acompanhar 2.228 cães encoleirados e não encoleirados na cidade de Bauru, centro-oeste paulista.
“Encoleiramos 941 cães em março de 2021 e trocamos suas coleiras entre setembro e outubro do mesmo ano. Logo depois, comparamos esse grupo com o controle, que contava com 1.040 cães. E, adicionalmente, selecionamos 247 cães vizinhos dos cães encoleirados para investigar uma possível proteção por proximidade. Queríamos responder a duas grandes perguntas: se as coleiras poderiam proteger igualmente os cães de diferentes áreas e o que aconteceria com os cães que não estavam encoleirados e que moravam perto dessas áreas que foram massivamente encoleiradas”, resume Patrícia Sayuri Silvestre Matsumoto, geógrafa, pós-doutoranda no Centro de Parasitologia e Micologia do Instituto Adolfo Lutz e primeira autora do artigo.
No grupo dos cães encoleirados, a incidência da doença foi bem baixa: 1,40%. Já no grupo dos cães vizinhos (não encoleirados) a taxa foi alta, de 6,02%. No grupo-controle, a incidência foi de 3,78%, ou seja, a taxa dos cães vizinhos aos encoleirados foi maior que a encontrada em condições naturais. Ou seja: se por um lado os cães encoleirados estão protegidos, por outro, o vetor pode ser repelido, podendo, portanto, procurar a fonte de alimentação mais próxima, o que aumenta as chances de infecção dos cachorros próximos não encoleirados.
Outro questionamento dizia respeito à eficácia da coleira inseticida em domicílios com diferentes perfis socioeconômicos. “Já era sabido que as coleiras inseticidas eram bastante eficazes, mas ainda não havia sido investigado se isso poderia se alterar de acordo com o perfil socioeconômico.”
O resultado indica que, nas áreas de baixa renda, a eficácia foi mais alta (76%) do que nas de alta renda (45%). A eficácia geral das coleiras na prevenção da doença foi de 63%.
Adesão popular
No grupo em que houve intervenção, 941 cães foram encoleirados em 478 domicílios situados em quatro áreas do município de Bauru. Próximo a esses cães, em um grupo chamado de “efeito indireto”, foram encoleirados tardiamente 247 cães em 128 domicílios – que funcionaram como controle no momento da coleta de sangue, mas, após a coleta, também foram encoleirados para garantir as mesmas condições dos cães vizinhos. No grupo-controle, foram acompanhados 1.040 cães em 572 domicílios. A grande maioria dos cães era sem raça definida. A eficácia das coleiras na redução da leishmaniose visceral foi avaliada comparando os grupos intervenção e controle.
“Em termos científicos, a eficácia é o valor de incidência do grupo-controle menos a incidência dos encoleirados, dividido pela incidência do grupo-controle e multiplicado por cem. Se havia nas áreas de menor renda muitos cães infectados e, depois da intervenção, muito poucos, então tivemos um sucesso maior do que na área em que a taxa permaneceu mais ou menos a mesma”, explica José Eduardo Tolezano, coordenador da pesquisa, diretor técnico do Centro de Parasitologia e Micologia do Instituto Adolfo Lutz e coautor do trabalho.
Uma questão importante está relacionada à perda das coleiras, pois, nas áreas de baixa renda, a perda foi menor. “Nas áreas de baixa renda há mais adesão. Nas de alta renda há mais recusa. Às vezes, os donos retiram a coleira ou mandam o cão para o banho no pet shop e ele volta sem. Alguns dos cães que foram infectados perderam a coleira inseticida em algum momento antes da troca das coleiras [aos seis meses de uso] e ela não foi reposta, deixando o animal novamente desprotegido e suscetível. A conclusão é que as coleiras podem ser eficazes em todas as áreas [se usadas de forma correta]”, resume Matsumoto.
Para Tolezano, há algumas hipóteses que precisam ser trabalhadas. “Em áreas mais carentes do ponto de vista econômico e social, sempre me surpreende como as comunidades têm uma necessidade muito grande de nos agradecer por estarmos fazendo o óbvio, o nosso trabalho. Acho que esse é o caminho para explicar a maior adesão nesses locais. A carência de atenção em relação aos serviços se revela dessa forma: o que deveria ser dever do Estado se revela como algo excepcional”, reflete.
Segundo Matsumoto, a literatura aponta (e a prática confirma) que muitos cães perdem as coleiras inseticidas porque não estão acostumados a usar nenhum tipo de coleira no pescoço e, quando são colocadas, eles tiram. “É importante criar o hábito”, defende.
Ela afirma que a equipe teve reuniões com os agentes de saúde e treinamentos para construir a proposta baseada numa abordagem de Saúde Única (One Health, termo usado para destacar a interligação entre a saúde dos humanos, dos animais e do planeta) e promoção da saúde. “Havia uma equipe de planejamento e logística. Nós avisávamos por aplicativo de mensagem quando passaríamos na casa da pessoa e também informamos os resultados do projeto ao longo das etapas. Essa integração foi o diferencial da nossa pesquisa. Três meses depois da troca da coleira, enviamos um questionário, pedindo para relatarem como estava o cão, mandar uma foto e informar se continuava com a coleira. É uma relação de pesquisa na qual o munícipe está inserido, faz parte da pesquisa e tem acesso aos resultados”, diz ela.
Tolezano ressalta que o serviço a ser realizado pela equipe era comunicado ao tutor do animal e planejado. “Fizemos um uso interessante das ferramentas digitais, tivemos coleta de dados em tempo real, no sentido de melhorar a interação entre a equipe, os agentes do serviço de saúde e a comunidade.”
Outro aspecto que chamou a atenção, de acordo com ele, foi a taxa de perda de adeptos. “Com o tempo, é natural que a gente vá perdendo os cães no estudo. E nossa taxa de perda foi bem mais baixa que a de outros estudos, que ultrapassam 50%, 60% em pouco tempo. Nossa taxa de perda foi de aproximadamente 20%.”
Matsumoto cita um relacionamento mais horizontal entre os pesquisadores, agentes e participantes. “A cada etapa mostrávamos o que havia sido conseguido. Procurávamos sempre fazer a coleta de material no fim de semana. Muito do que deu certo partiu do conhecimento popular.”
O trabalho teve o apoio da FAPESP por meio de cinco projetos (17/50333-7, 18/25889-4, 21/03872-5, 19/22246-8 e 21/08630-0).
Coleiras
Teoricamente, a hipótese inicial era de que os cães das vizinhanças estariam protegidos indiretamente pelas coleiras dos animais encoleirados. “Mas observamos que, na verdade, ele está mais exposto do que o próprio cão do grupo-controle, que está mais longe e não foi encoleirado”, revela Tolezano.
Isso porque a coleira é impregnada com deltametrina, substância com efeito inseticida e também repelente. “Agora nos perguntamos se o fato de o cão encoleirado repelir o inseto explicaria essa taxa maior de incidência da doença nos cães do entorno em relação ao grupo-controle.”
No entanto, com a continuidade dos estudos, os pesquisadores enfatizam que essa desvantagem inicial para os vizinhos não encoleirados deverá diminuir e até mesmo desaparecer, na medida em que a estratégia de controle da transmissão canina inclua o uso contínuo e massivo das coleiras impregnadas com inseticida.
Tolezano revela que existem no mercado alguns produtos similares à coleira utilizada no trabalho (a preços que variam, podendo chegar a R$ 200). “Há coleiras com outros tipos de inseticidas e produtos que utilizam métodos de gotejamento, como os antipulgas; a grande diferença é que nenhum deles tem ação superior a um mês, o que significa aumento da despesa e mais trabalho para o tutor. Essas coleiras que usamos duram até seis meses [e há algumas que duram oito]. O segredo industrial é a forma como o inseticida é colocado na coleira. A substância não representa risco nem para cães nem para humanos [apenas o de reações alérgicas dos animais ao produto] e o inseticida é liberado pela movimentação do animal: aquela fricção que se dá entre a coleira e a pele do cão vai liberando o inseticida, que permanece na camada gordurosa da pele”, esclarece ele.
Infelizmente, o preço dessas coleiras no mercado torna-as inviáveis para as populações de renda mais baixa. Porém, segundo Matsumoto, o Ministério da Saúde está em fase de implantação dessas coleiras em uma ação de controle em alguns locais do Brasil. “Penso que o uso da coleira pode ser implementado e pensado como política pública no Brasil. Quanto custa um caso de leishmaniose visceral em um ser humano que precisará de tratamento ao longo da vida?”, questiona.
O artigo Efficacies of insecticide dog collars against visceral leishmaniasis in low and high-income areas and the effects for non-collared neighbor dogs pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0001706X22003187.