A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 30% da população mundial sofra com miopia e a expectativa é que esse número aumente de forma significativa nos próximos anos; alguns estudos apontam que metade da população mundial pode sofrer com o problema até 2050 – e o crescimento da condição está diretamente relacionado com a quantidade de tempo que passamos em frente a telas de smartphones e computadores.
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Como uma pessoa que sofre de miopia, posso dizer que usar óculos é um saco em muitas situações. É difícil para jogar futebol, não posso nem pensar em assistir um filme deitado, o cinema 3D não é nada confortável (óculos sobre óculos!) e já quase perdi um show porque estava chovendo e eu só tinha duas opções: ver tudo embaçado com gotinhas nas lentes ou ver uns borrões – tive sorte, pois a chuva parou. Tá certo que existem lentes de contatos, mas elas também têm suas desvantagens.
Outra opção é a cirurgia de correção da miopia, também conhecida como cirurgia refrativa ocular, mas a real é que ela também tem alguns contras (assim como qualquer outro procedimento cirúrgico). Há relatos de quem precisou passar pelo procedimento mais de uma vez ou que sofreu complicações como olho seco, por exemplo.
Mas o futuro pode ser mais nítido daqui alguns anos. Pesquisadores da Universidade de Bar-Ilan, em Tel-Aviv, Israel, estão desenvolvendo um método de correção de problemas de visão que pode aposentar essas três opções que comentei. A ideia deles consiste em um rápido procedimento de correção refrativa via laser, seguida pela utilização de um colírio com nanopartículas, que é capaz de fixar a modificação da córnea. E o melhor: tudo poderia ser feito em casa. O procedimento poderia ser realizado para várias condições além da miopia, incluindo hipermetropia e astigmatismo, por exemplo.
O Gizmodo Brasil conversou com o professor Zeev Zalevsky, físico especialista em optoeletrônica e um dos idealizadores do projeto. Ele explica que a invenção possui três partes: um software personalizado, onde o paciente colocaria sua receita médica com informações do problema de visão; um pequeno projetor de laser, que faria a leitura dessas informações e aplicaria a correção no olho do paciente e, por fim, um colírio com nanopartículas especiais que fixaria o procedimento durante algum tempo.
Para entender como é possível fazer tudo isso em casa, é preciso explicar de que forma a correção refrativa funcionaria com a invenção. Zalevsky diz que uma cirurgia tradicional remove muitas camadas da córnea e, assim, ela fica mais plana para que as luzes se formem exatamente sobre a retina. O novo método, por sua vez, faz a mesma coisa, porém apenas na camada mais externa da córnea, chamada de epitélio.
“Quando você faz uma cirurgia de correção a laser, nem sempre funciona. Porque você precisa mudar a curvatura da lente do seu olho e remover dezenas de camadas da superfície da córnea. O que fazemos, por outro lado, é apenas arranhar o epitélio da córnea, que tem alta capacidade de regeneração. É como a nossa pele, você coça, a camada mais externa vai embora, mas depois regenera”, explica o professor. “A gente não muda a curvatura das lentes dos olhos, são os arranhões que mudam a forma com que a luz passa pelos olhos e assim conseguimos alterar a forma como a luz refrate”.
A aplicação desse laser no olho seria feita a partir de um pico projetor portátil, conectado a um smartphone ou computador, por exemplo. Os pesquisadores explicam que esse tipo de produto até existe no mercado, mas não para essa finalidade.
Uma vez que o projetor obtivesse as informações do aplicativo de celular, o paciente se posicionaria na frente dele e, em menos de um segundo, um laser faria a correção na córnea. Zalevsky garante que não existem riscos, já que o procedimento dura um instante e, além disso, o corte é muito superficial e numa região que se regenera com muita facilidade – em um dia o epitélio é capaz de se recuperar.
Se o corte é tão superficial e essa camada se regera, como a vista é corrigida? É aí que entra o colírio com nanopartículas. Esse colírio especial penetra nos “arranhões” feito pelo projetor de laser no olho do paciente e gera mudanças no índice de refração, mudando a forma com que a luz passa pela córnea.
“Se você não tivesse as nanopartículas, as ranhuras feitas pelo laser iriam desaparecer após alguns dias. Além disso você tem lágrimas, e sem as nanopartículas o efeito do laser poderia não ser estável. Porém, elas são responsáveis por penetrar as ranhuras e mantê-las ali, oferecendo uma perfomance estável quando a luz passar pelos olhos, corrigindo a visão”, diz Zalevsky.
O professor Jean-Paul Moshe Lellouche, do departamento de química e nanomateriais e responsável pela fabricação desse material, conta que tem alcançado bons resultados no aumento do índice de refração com seus experimentos. “Essa nanotecnologia é projetada para funcionar especificamente para o padrão da retina humana. É extremamente forte para aumentar o índice de refração, a partir de materiais que preparamos aqui no laboratório”.
As expectativas são altas e o estudo ainda está em um estágio inicial. Até agora, foram feitos experimentos “ex vivo”, ou seja, fora de um organismo vivo. Os cientistas prepararam todo o sistema e realizaram o procedimento utilizando o olho de porco, que possui estruturas muito similares aos olhos humanos.
Os resultados são promissores e, de acordo com os pesquisadores, a expectativa inicial é que o procedimento dure um mês. Esse número pode mudar, quando os testes em humanos forem realizados. Além disso, Lellouche diz que o avanço da nanotecnologia pode permitir resultados ainda melhores e mais duradouros: “quando fizermos estudos com humanos, poderemos comprovar que a nanopartícula será mais estável e irá durar por muito mais tempo”.
Eles garantem que, apesar dos experimentos terem sido feitos fora de organismos vivos, não há nenhuma chance do colírio machucar os olhos. “A gente vai checar isso com certeza nos experimentos in vivo e na estabilidade, mas de acordo com os métodos científicos utilizados, é impossível de machucar alguém, causar defeitos ou qualquer coisa do tipo. Desde o início a gente pensou em nanopartículas biocompatíveis, e não tóxicas. Não vai doer”, cravou Lellouche.
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Uma das minhas preocupações ao descobrir sobre a invenção foi sobre o custo desse procedimento. Os pesquisadores ainda estão longe de estimarem um preço de kit que incluirá o aplicativo, o laser e o colírio, mas afirmam que com uma produção em escala industrial, será possível chegar a uma solução viável para o mercado.
“A metodologia de preparação dos nanomateriais é extremamente simples e pode ter uma escala de produção fácil, sem problemas industriais. Ainda não pode ser muito barato, porque os materiais que utilizamos no início do processo de fabricação são bem caros. Mas acho que com a criação da empresa e com o desenvolvimento industrial, podemos fazer avanços e acordos com as fornecedoras dos materiais”, afirma Lellouche.
O próximo passo do estudo é realizar experimentos in vivo, também com olhos de porcos. Os cientistas ainda estão aprimorando o projetor a laser e querem chegar a uma performance maior na córnea. Na próxima fase de testes, o método será submetido à publicação em revistas e periódicos revisadas por pares científicos.
Depois disso, a expectativa é iniciar testes clínicos em humanos e passar por toda a fase regulatória, que inclui aprovação da FDA (Food and Drug Administration, órgão americano equivalente à Anvisa) e da EMA (European Medicines Agency).
Ainda faltam alguns anos até que esse futuro fique mais claro para os míopes, especialmente porque um dos desafios dos pesquisadores é o financiamento do projeto. Neste momento, eles estão buscando apoiadores, entre eles empresas que possam bancar parte da pesquisa. Uma vez que a grana estiver em mãos, os cientistas afirmam que dentro de um ou dois anos conseguem ter um produto finalizado.
*O jornalista viajou para Tel-Aviv a convite da Embaixada de Israel no Brasil
Imagem do topo: katzac/Flickr