Como a política explica a aposta crescente de El Salvador em bitcoins

O país adotou a criptomoeda em setembro -- e, desde então, vem aumentando suas reservas. Críticos ao governo apontam que incentivo pode ser cortina de fumaça.
bitcoin

El Salvador, país de 6,5 milhões de habitantes da América Central, entrou forte na onda das criptomoedas. E o curioso é a aposta não vem da população, mas do próprio governo. No início de setembro, o país se tornou o primeiro do mundo a adotar o bitcoin como moeda de circulação oficial. A nação aposentou o colón salvadorenho há 20 anos e, sem criar uma nova moeda própria, passou a usar o dólar a partir de então.

A quantidade de bitcoins em posse do governo, desde o anúncio em setembro, só cresceu. Com a compra de 200 bitcoins feita no dia 7 deste mês, El Salvador passou a possuir 400 unidades da criptomoeda. Na última segunda-feira (20), aproveitando a queda dos preços, o governo arrematou mais 150 desses tokens digitais de pagamento — por US$ 6,5 milhões (ou R$ 34,6 milhões). Hoje, já são 700 bitcoins na conta do país, algo em torno dos US$ 30,6 milhões (R$ 163 milhões).

Presidente-problema

A decisão foi anunciada via Twitter pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele. Bukele tem sido o grande porta-voz pró-cripto no país — e virou alvo de críticas por conta das medidas. A pressão da oposição, no entanto, não parece incomodar o político que, inclusive, vem tirando sarro da situação. Na última segunda, Bukele atualizou sua bio na rede social com os dizeres “o ditador mais cool do mundo”.

Nayib Bukele, 40, é o presidente mais jovem da história de El Salvador, e está à frente do país desde junho de 2019. Desde que assumiu o governo, apesar de contar com o apoio da maior parcela da população, tem tido uma relação combativa com opositores e com a imprensa. A aposta no bitcoin, no entanto, já abala a imagem do presidente.

O argumento dos críticos ao governo é que os incentivos são nada além de uma cortina de fumaça para encobrir ataques de Bukele a instituições democráticas e à imprensa. Em maio, o congresso salvadorenho (cuja maioria é favorável a Bukele) aprovou uma lei para afastar juízes da suprema corte do país. Em setembro, novos juízes recém-indicados determinaram que é constitucional que o presidente emende um segundo mandato — abrindo caminho para a reeleição de Bukele em 2024.

Por que o bitcoin?

Segundo o governo, o incentivo pelo uso da criptomoeda visa dar um gás na economia, melhorando o acesso da população a transações e outros serviços financeiros. 70% das pessoas que vivem no país, afinal, não têm conta no banco — o que, como você pode imaginar, dificulta muito o controle financeiro e o acúmulo de bens.

A motivação principal, no entanto, foi facilitar o recebimento de transações financeiras de migrantes que vivem em outros países. Assim, eles podem enviar dinheiro para suas famílias sem perder uma boa parcela para taxas de conversão. Estima-se que, em 2019, 20% do PIB de El Salvador vinha dessa grana que chega do exterior.

Como o bitcoin e outras criptomoedas não têm intermediários, a cobrança de taxas acontece apenas quando o dinheiro digital troca de mãos — aumentando a quantidade de dinheiro que circula entre os cidadãos. O governo estima que o bitcoin possa representar uma economia de US$ 400 milhões (R$ 2,1 bilhões) por ano ao país em taxas de transação cobradas sobre os recursos que vêm do exterior.

Ainda é possível fazer compras, transações e outros movimentos financeiros em dólar. Mas o governo vem investindo pesado na divulgação do novo método. Para incentivar a mudança, o país implementou a chamada “carteira Chivo”, app inventado pelo país para centralizar as transações com cripto. “Chivo” é, também, uma gíria de El Salvador para algo “legal” — o que explica os dizeres da bio de Bukele no Twitter, como mencionamos acima.

Cidadãos que se cadastram no programa ganham US$ 30 em bitcoin. A medida, porém, ainda não pegou para valer entre os salvadorenhos, que mostram dificuldade em confiar na criptomoeda. Um levantamento feito pela UCA (Universidade Centro-Americana) e pelo jornal La Prensa no início de setembro mostrou que quase 83% da população têm pouca ou nenhuma confiança no bitcoin. Para 96%, seu uso deveria ser voluntário.

Uma onda de protestos anti-bitcoin vem tomando conta de El Salvador nos últimos dias. Na quarta-feira (15), houve a queima de uma espécie de caixa eletrônico dedicado à criptomoeda — chamado de “quiosque Chivo”, que conta com 200 unidades espalhadas pelo país.

Quais os problemas da aposta

O primeiro deles tem sido de ordem prática. Como conta o repórter John Holman, correspondente do jornal Al Jazeera na América Latina, no podcast The Take, cidadãos encontraram certa dificuldade em operar suas carteiras digitais de início. “A estreia do bitcoin foi um tanto decepcionante, levando em conta o que o presidente estava esperando”, conta Holman. Ainda que não tenham pretensões reais de fazer transações no futuro, o incentivo de US$ 30 por parte do governo levou muitas pessoas a procurar lojas que já aceitam a tecnologia — como redes de fast-food do país. Muitas delas ainda não estavam preparadas para aceitar a criptomoeda.

O grande problema é que o bitcoin é um ativo digital extremamente volátil. Isso significa que ele pode, de um dia para o outro, oscilar muito de preço. E isso, em se tratando de um país, pode agravar ainda mais a crise econômica. Donos de comércios que receberam uma certa quantia em bitcoin na segunda, por exemplo, podem não ter lucros já na terça. Da mesma maneira, um cidadão que comprou um produto num dia pode não conseguir repetir a compra 24h depois.

O FMI (Fundo Monetário Internacional) alertou para os desafios regulatórios que derivam da adoção do bitcoin como moeda oficial. A Lei Bitcoin de El Salvador, que tem apenas 16 artigos, determina que a taxa de câmbio entre o bitcoin e o dólar deverá ser “estabelecida livremente pelo mercado”. Como o governo não centraliza as transações envolvendo a criptomoeda, tem poucos mecanismos para intervir caso o preço fuja do controle.

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Uma das vantagens para os usuários de criptomoedas é o anonimato. Mas, para as instituições reguladoras, isso é um risco. Um medo que deriva disso é que, sem o controle firme por parte do Estado, El Salvador se torne um paraíso para crimes como a lavagem de dinheiro — além de outros crimes como o tráfico de drogas e corrupção.

Guilherme Eler

Guilherme Eler

Editor-assistente do Giz Brasil, são-carlense e vascaíno. Passou pelas redações de Superinteressante, Guia do Estudante e Nexo Jornal.

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