Você se lembra daquela cena alucinante em Matrix, quando Neo aprende jiu-jitsu e kung fu recebendo dados diretamente no cérebro? Pesquisadores do HRL Laboratories alegam ter criado um dispositivo semelhante que “ensina” habilidades novas a pilotos. Pena que não é o caso.
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Isso acontece bastante: cientistas publicam um estudo, querem divulgá-lo, mas o comunicado oficial à imprensa deturpa os resultados. O título deste comunicado em particular é: “Aprenda a pilotar um avião a partir de padrões de ondas cerebrais de pilotos especializados”.
Um vídeo produzido pela HRL Labs também dá a ideia errada. Na descrição, eles dizem:
É um caso de vida imitando a arte. Assim como o filme de ficção científica “Matrix” mostrou um dispositivo capaz de melhorar a aquisição de habilidades, pesquisadores da HRL Laboratories, LLC, descobriram que a estimulação cerebral de baixa corrente elétrica pode modular o aprendizado de complexas habilidades do mundo real.
Na verdade, o novo estudo mostra apenas uma coisa: talvez seja possível melhorar como uma pessoa aprende novas habilidades. Essas aptidões específicas, no entanto, não podem ser transferidas diretamente através de ondas cerebrais. No Brasil, a notícia foi dada incorretamente pelo Olhar Digital, TecMundo e HypeScience.
Pior: o estudo não poderá ser replicado tão cedo (para garantir que está correto) porque os pesquisadores têm patentes pendentes em seus métodos de estimulação cerebral. Além disso, o estudo foi publicado na controversa revista Frontiers in Human Neuroscience.
O estudo
A equipe de pesquisa do HRL Labs, liderada por Matthew Phillips, usou uma técnica chamada de estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC) para excitar áreas do cérebro responsáveis pelo aprendizado e retenção de habilidades.
A ETCC é uma técnica não-invasiva e indolor, utilizando uma corrente elétrica constante e baixa para estimular regiões específicas do cérebro. Vários estudos sugerem que ela pode ser usada para tratar distúrbios neuropsicológicos, tais como depressão, ansiedade, mal de Parkinson e dor crônica.
Durante o experimento, pesquisadores monitoraram as ondas cerebrais de seis pilotos comerciais e militares. Depois, eles transmitiram esses padrões para 32 iniciantes que estavam aprendendo a pilotar um avião em um simulador de voo.
Indivíduos que receberam a estimulação cerebral por ETCC melhoraram suas habilidades de pilotagem, particularmente de pouso. Os que foram expostos a um placebo não apresentaram tal melhoria.
A descoberta sugere que a ETCC pode melhorar, ainda que temporariamente, a capacidade de uma pessoa em aprender. Mas, como dissemos, isso certamente não significa que as informações dos pilotos experientes foram transmitidas através da técnica.
Críticas
Mark S. George, professor de psiquiatria, radiologia e neurociências na Universidade de Medicina da Carolina do Sul, e editor-chefe da revista científica Brain Stimulation, não ficou impressionado.
Ele diz ao Gizmodo que, por um lado, os resultados dependem de um “estudo de amostra pequena em funcionários vulneráveis, realizado por cientistas com patentes pendentes que serão influenciados por suas próprias conclusões”. Já existem vários estudos com amostras pequenas que mostram resultados cognitivos usando ETCC, mas que não conseguiram ser replicados e comprovados.
“Esta área é bastante controversa, com estudos positivos sendo publicados com mais frequência do que testes falhos, criando um viés de publicação”, disse George. “Se existe um efeito aqui neste estudo, a ETCC apenas melhorou a capacidade dos indivíduos em aprender. Não houve transferência de informações através da estimulação cerebral.”
No estudo, os cientistas afirmam que “a pesquisa foi conduzida na ausência de quaisquer relações comerciais ou financeiras que possam ser interpretadas como um potencial conflito de interesses”. No entanto, eles admitem que vários dos coautores “são listados como inventores em pedidos de patentes sobre métodos de estimulação cerebral”. Vale mencionar também que o HRL Labs faz pesquisa e desenvolvimento para a Boeing e General Motors.
Tem mais: o estudo foi publicado em uma revista científica bastante duvidosa. A Popular Mechanics explica:
A Frontiers of Human Neuroscience é propriedade da Frontiers Media, que precisou voltar atrás em diversos estudos, incluindo um altamente controverso que comparava a psicologia entre teóricos da conspiração e pessoas que negam a mudança climática.
A revista Human Neuroscience também voltou atrás em um artigo recentemente, no qual resultados sobre o controle da inibição na verdade surgiram devido a um erro de computação.
Críticos também questionam os métodos de publicação da Frontier, que recebe dinheiro dos pesquisadores (em vez dos assinantes) para publicar seus artigos. Há também o fato básico de que essas áreas da neurociência estão na fronteira e em seus estágios primitivos.
Revistas com alta reputação, como Science e Nature, não cobram para que os pesquisadores publiquem seus estudos; em vez disso, elas vivem à base de assinaturas. Revistas que acesso aberto que exigem pagamento dos cientistas têm o incentivo de publicar estudos sem checá-los; falamos por aqui de dois periódicos que aceitaram um artigo criado no gerador de lero-lero e “escrito” por Maggie Simpson.
Isso é culpa por associação, mas a força de um estudo muitas vezes pode ser extraída pela qualidade da revista na qual ele foi publicado.
Por fim, é altamente improvável que a ETCC consiga transferir dados diretamente ao cérebro – pelo menos não de forma isolada. Reconfigurar o estado físico de neurônios para codificar memórias específicas vai exigir muito mais do que uma corrente elétrica.
No mês passado, por exemplo, pesquisadores alteraram a memória de camundongos usando uma combinação de genética e de luz entregue por cabos de fibra óptica. A capacidade de fazer “upload” de um conjunto de habilidades – quer se trate de kung fu ou pilotar um avião – pode acontecer no futuro, mas não veremos isso tão cedo.