Curso que formou 1ª turma de Yanomamis está parado por falta de recursos
O que deveria ser uma alegria, virou motivo de preocupação. O curso de “Licenciatura Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável”, que formou a primeira turma de Yanomamis em setembro pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas), está parado por falta de recursos. Acompanhe a reportagem do Giz Brasil.
As turmas que iniciaram em 2016 só foram até o sexto semestre e estão sem ensino há quatro anos. Quem se matriculou em 2018 nunca iniciou o curso. Ao todo, são seis turmas, com média de 40 estudantes cada, paradas e sem perspectiva de retorno às aulas.
Os 42 professores-pesquisadores Yanomamis que se formaram no ano passado começaram os estudos ainda em 2015. Eles deviam colar grau em 2018 ou início de 2019, mas não puderam frequentar a universidade por quatro anos. O mesmo aconteceu com as turmas das etnias Baniwa, Tukano e Yêgatu, que também se formaram no ano passado.
Não é por falta de interesse dos estudantes. A Ufam confirmou que o curso, que é exclusivo para falantes de línguas originárias, ficou sem dinheiro para funcionar desde o governo de Michel Temer.
“Falta repasse do governo federal”, explicou o atual coordenador do curso, o professor Nelcioney José de Souza Araújo, ao Giz Brasil. “A universidade tem se desdobrado para manter os custos, haja vista que não foi repassado aporte financeiro”.
Segundo Araújo, o problema orçamentário se estende para outros cursos ofertados às populações originárias. “Em média, são quase R$ 1,8 milhão por ano para custear os três pólos [grupos étnicos que o curso atende]”, disse.
Curso diferente
O curso de Licenciatura Indígena da Ufam é diferente das outras 25 graduações para povos originários que existem no Brasil. Ele foi criado em 2004 a partir de uma demanda das comunidades do Alto do Rio Negro, no Amazonas.
“Até então, a Ufam só ofertava cursos de brancos para indígenas”, explicou a professora e ex-coordenadora do curso, Ivani Ferreira de Faria, ao Giz Brasil. “Esses cursos só mantêm o processo colonial, eles não são feitos para atender às demandas territoriais, de contexto cultural e político dos indígenas”.
O diferencial é que todos os aspectos da graduação foram pensados pelas comunidades de forma participativa, desde o processo de seleção até o projeto pedagógico do curso. Isso inclui o local onde as aulas são ministradas: na própria terra indígena.
Como é a universidade que vai até os estudantes, o orçamento precisa responder a uma logística que nem sempre aparece em outras graduações. Neste caso, os professores saem de Manaus e vão até São Gabriel da Cachoeira, onde estão as comunidades.
Para cruzar a Amazônia, só de avião – e cada passagem custa, em média, R$ 2 mil. Chegando lá, é preciso se deslocar de barco até o local das aulas.
Sem disciplinas
Por isso, o currículo também é diferente: não há disciplinas e os quatro anos do curso se baseiam na aprendizagem pela pesquisa. Na prática, as turmas definem oito problemáticas que vão desenvolver ao longo de quatro anos. A partir de perguntas e respostas, eles estabelecem quais serão as pesquisas e suas práticas investigativas.
“No começo, um professor vai para lá, fica duas semanas e pergunta: quais problemas vocês têm? Quais querem resolver? Que conhecimentos um professor-pesquisador precisa ter para ajudar seu povo? E assim vão nascendo outras perguntas”, conta a ex-coordenadora.
“Também definimos as formas de avaliação, porque não há provas. Eles dizem como farão as pesquisas e a avaliação acontece a partir do cumprimento do que estabeleceram”. O curso cumpre 3.550 horas de aula, uma exigência do MEC (Ministério da Educação).
A grade obedece à cultura indígena em sua totalidade. A ausência de disciplinas não significa desordem, mas um traço essencial de povos que não separam o conhecimento em “caixas”.
“Para o indígena, o conhecimento não é isolado. Eles são parte da terra e terra é a vida. Ou seja, não há como separar a vida, a saúde humana, da vida da terra. Isso é um ponto de vista diferente, muitas vezes incompreensível para os brancos”, pontuou a professora.
Atuação
Formados, as turmas de Licenciatura Indígena entram no mercado não só para atuar como professores na educação básica (ensino fundamental e médio), mas também estão qualificados como pesquisadores, gerentes de projetos e gestores de territórios.
Todos têm habilidades com tradução, uma vez que São Gabriel da Cachoeira – local onde estão as terras indígenas – possui três línguas oficiais, além do português: tukano, baniwa e nheengatu.
“Todos estão na escola dando aula, alguns estão no mestrado, outros acabaram de entrar na pós-graduação. Dos Yanomamis, 99% são professores. Mas não só isso: eles também seguiram uma carreira política em suas comunidades e são atuantes nos movimentos pela preservação de suas terras”, pontuou Faria.
No aguardo pelo retorno
No último dia 18, o reitor da Ufam, Sylvio Puga, se reuniu com a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para falar sobre as demandas da educação indígena no Amazonas. Guajajara disse que deve se reunir em breve com o ministro da Educação, Camilo Santana, para tratar da ampliação do orçamento e retomada das atividades.
A educação é prioridade na agenda do Ministério dos Povos Indígenas. Hoje recebi parentes do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (@fneei )para construir ações educacionais efetivas, isto é, de maneira apropriada aos modos culturais indígenas de ensino e aprendizagem. pic.twitter.com/dWo6a8hp2W
— Sonia Guajajara (@GuajajaraSonia) January 21, 2023
O Censo 2010 estimou que vivem no Brasil quase 900 mil indígenas divididos em 305 etnias e falantes de 274 línguas. A população Yanomami soma 38 mil pessoas em uma terra demarcada de 9,6 milhões de hectares entre o Amazonas e Roraima.
São os Yanomamis de Roraima que enfrentam a situação de emergência pública por desnutrição severa e doenças endêmicas, como pneumonia e malária.