Curso que formou 1ª turma de Yanomamis está parado por falta de recursos

Curso de Licenciatura Indígena da Ufam está sem repasses do governo federal desde 2017. Confira detalhes desta situação na nossa reportagem
Curso que formou 1ª turma de Yanomamis está parado por falta de recursos
Imagem: Ufam/Divulgação

O que deveria ser uma alegria, virou motivo de preocupação. O curso de “Licenciatura Indígena: Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável”, que formou a primeira turma de Yanomamis em setembro pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas), está parado por falta de recursos. Acompanhe a reportagem do Giz Brasil.

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As turmas que iniciaram em 2016 só foram até o sexto semestre e estão sem ensino há quatro anos. Quem se matriculou em 2018 nunca iniciou o curso. Ao todo, são seis turmas, com média de 40 estudantes cada, paradas e sem perspectiva de retorno às aulas. 

Os 42 professores-pesquisadores Yanomamis que se formaram no ano passado começaram os estudos ainda em 2015. Eles deviam colar grau em 2018 ou início de 2019, mas não puderam frequentar a universidade por quatro anos. O mesmo aconteceu com as turmas das etnias Baniwa, Tukano e Yêgatu, que também se formaram no ano passado. 

Não é por falta de interesse dos estudantes. A Ufam confirmou que o curso, que é exclusivo para falantes de línguas originárias, ficou sem dinheiro para funcionar desde o governo de Michel Temer. 

“Falta repasse do governo federal”, explicou o atual coordenador do curso, o professor Nelcioney José de Souza Araújo, ao Giz Brasil. “A universidade tem se desdobrado para manter os custos, haja vista que não foi repassado aporte financeiro”. 

Segundo Araújo, o problema orçamentário se estende para outros cursos ofertados às populações originárias. “Em média, são quase R$ 1,8 milhão por ano para custear os três pólos [grupos étnicos que o curso atende]”, disse. 

Curso diferente

O curso de Licenciatura Indígena da Ufam é diferente das outras 25 graduações para povos originários que existem no Brasil. Ele foi criado em 2004 a partir de uma demanda das comunidades do Alto do Rio Negro, no Amazonas. 

“Até então, a Ufam só ofertava cursos de brancos para indígenas”, explicou a professora e ex-coordenadora do curso, Ivani Ferreira de Faria, ao Giz Brasil. “Esses cursos só mantêm o processo colonial, eles não são feitos para atender às demandas territoriais, de contexto cultural e político dos indígenas”. 

O diferencial é que todos os aspectos da graduação foram pensados pelas comunidades de forma participativa, desde o processo de seleção até o projeto pedagógico do curso. Isso inclui o local onde as aulas são ministradas: na própria terra indígena. 

Como é a universidade que vai até os estudantes, o orçamento precisa responder a uma logística que nem sempre aparece em outras graduações. Neste caso, os professores saem de Manaus e vão até São Gabriel da Cachoeira, onde estão as comunidades. 

Para cruzar a Amazônia, só de avião – e cada passagem custa, em média, R$ 2 mil. Chegando lá, é preciso se deslocar de barco até o local das aulas. 

Sem disciplinas 

Por isso, o currículo também é diferente: não há disciplinas e os quatro anos do curso se baseiam na aprendizagem pela pesquisa. Na prática, as turmas definem oito problemáticas que vão desenvolver ao longo de quatro anos. A partir de perguntas e respostas, eles estabelecem quais serão as pesquisas e suas práticas investigativas. 

“No começo, um professor vai para lá, fica duas semanas e pergunta: quais problemas vocês têm? Quais querem resolver? Que conhecimentos um professor-pesquisador precisa ter para ajudar seu povo? E assim vão nascendo outras perguntas”, conta a ex-coordenadora. 

“Também definimos as formas de avaliação, porque não há provas. Eles dizem como farão as pesquisas e a avaliação acontece a partir do cumprimento do que estabeleceram”. O curso cumpre 3.550 horas de aula, uma exigência do MEC (Ministério da Educação). 

A grade obedece à cultura indígena em sua totalidade. A ausência de disciplinas não significa desordem, mas um traço essencial de povos que não separam o conhecimento em “caixas”. 

“Para o indígena, o conhecimento não é isolado. Eles são parte da terra e terra é a vida. Ou seja, não há como separar a vida, a saúde humana, da vida da terra. Isso é um ponto de vista diferente, muitas vezes incompreensível para os brancos”, pontuou a professora. 

Atuação 

Formados, as turmas de Licenciatura Indígena entram no mercado não só para atuar como professores na educação básica (ensino fundamental e médio), mas também estão qualificados como pesquisadores, gerentes de projetos e gestores de territórios. 

Todos têm habilidades com tradução, uma vez que São Gabriel da Cachoeira – local onde estão as terras indígenas – possui três línguas oficiais, além do português: tukano, baniwa e nheengatu.

“Todos estão na escola dando aula, alguns estão no mestrado, outros acabaram de entrar na pós-graduação. Dos Yanomamis, 99% são professores. Mas não só isso: eles também seguiram uma carreira política em suas comunidades e são atuantes nos movimentos pela preservação de suas terras”, pontuou Faria. 

No aguardo pelo retorno

No último dia 18, o reitor da Ufam, Sylvio Puga, se reuniu com a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para falar sobre as demandas da educação indígena no Amazonas. Guajajara disse que deve se reunir em breve com o ministro da Educação, Camilo Santana, para tratar da ampliação do orçamento e retomada das atividades.

O Censo 2010 estimou que vivem no Brasil quase 900 mil indígenas divididos em 305 etnias e falantes de 274 línguas. A população Yanomami soma 38 mil pessoas em uma terra demarcada de 9,6 milhões de hectares entre o Amazonas e Roraima.

São os Yanomamis de Roraima que enfrentam a situação de emergência pública por desnutrição severa e doenças endêmicas, como pneumonia e malária. 

Julia Possa

Julia Possa

Jornalista e mestre em Linguística. Antes trabalhei no Poder360, A Referência e em jornais e emissoras de TV no interior do RS. Curiosa, gosto de falar sobre o lado político das coisas - em especial da tecnologia e cultura. Me acompanhe no Twitter: @juliamzps

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