Documentário dos irmãos Menendez tem editora brasileira: confira papo exclusivo
Mais de três décadas após o caso dos irmãos Menendez, diversas produções começaram a pipocar nos streamings sobre o tema. Uma delas é o documentário “O Caso dos Irmãos Menendez” (“The Menendez Brothers”, no título original).
O filme aborda o assassinato de José e Mary Menendez cometido por seus filhos Erik e Lyle, na Califórnia, em 1989. No julgamento, eles alegaram serem vítimas de abuso sexual por parte do pai, com o conhecimento da mãe.
Com direção de Alejandro Hartmann, a produção traz na equipe a cineasta gaúcha Fernanda Schein. Vencedora de um Emmy pela série “Poisoned”, ela já participou do documentário “Neymar: O Caos Perfeito”. Leia abaixo a entrevista de Fernanda Schein exclusiva para o Giz Brasil:
Giz Brasil: Você gosta de true crime?
Fernanda Schein: “Então, eu não era fã. Acompanhava algumas coisas, só que eu sempre fui uma pessoa meio impressionada com filmes de terror, com aqueles programas tipo ‘Linha Direta’, sabe? Não era um tipo de conteúdo que estava muito acostumada a consumir. Porém, gosto dessa nova onda do true crime que tá acontecendo. Acho que o documentário dos Menendez até iniciou um pouco isso, esse true crime que tem como intenção final trazer um aspecto social. Não é um true crime no sentido de que está só explorando um crime pra conseguir audiência. Existe um propósito pra estar contando aquela história que pode gerar benefício social.”
Giz: Você assistiu produções anteriores sobre os Menendez?
Fernanda: “Sim. Antes de começar a trabalhar no documentário, quando comecei a fazer entrevista, chegou o momento que eu estava só esperando a confirmação da Netflix de que estava contratada. E a produtora meio que já tinha me dado a letra, tipo, ‘Fernanda, a gente está só esperando a confirmação, mas já tá praticamente certo, se quiser, já pode passar o teu final de semana assistindo coisas sobre os Menendez’. Daí foi isso que eu fiz. Assisti todo o material que tinha sobre eles.”
Giz: Como foi o processo de contratação com a Netflix? Como chegaram até você?
Fernanda: “Comecei a trabalhar com a Netflix em 2020, logo antes da pandemia. O primeiro projeto foi a série do Neymar, toda produzida aqui nos Estados Unidos. Porém só tinha um editor brasileiro e uma série de editores americanos. Precisavam de uma assistente que falasse português. Óbvio que tinham traduções de tudo, mas a gente no Brasil usa muita expressão que não tem tradução literal. Às vezes precisa de um certo contexto para explicar o que é que estão falando. E o Neymar tinha muito material de arquivo e como a gente sabe, é uma celebridade desde muito novo, então tinha décadas e décadas de arquivos jornalísticos. Também precisavam de alguém para revisar esse material e decidir o que valia a pena os editores assistirem ou não. Então, a Netflix entrou em contato com o Festival Brasileiro de Cinema, aqui em Los Angeles, e pediu indicação de assistente de montagem que trabalhasse naquele determinado software e falasse português.”
Giz: Você disse que é uma pessoa impressionável. Como foi trabalhar com um tema mais pesado?
Fernanda: “Foi interessante porque eu acho que a gente vê uma dessensibilização em relação ao processo. Eu lembro que a primeira vez que ouvi os depoimentos e vi o material da polícia, fiquei muito impressionada, tipo ‘nossa, não sei se vou conseguir ficar meses com isso aqui’. Mas a gente começa a trabalhar, a olhar para aquilo todos os dias… E aí quando passaram três, quatro semanas eu comecei a me dar conta que já estava completamente dessensibilizada para o material, sabe? Então quando eu olhava aquele material já não tinha uma reação emocional, digamos assim. Eu já tinha uma reação bem lógica do sentido de ‘ah, isso se conecta com tal parte da história’… Lembrei muito do meu pai, que é médico, porque eu fico pensando que deve ser uma coisa similar.”
Giz: Foram quantos meses no projeto?
Fernanda: “Seis ou sete meses. O que acontece com documentários é que, diferente de uma coisa narrativa, que a gente tem um roteiro e edita exatamente o que tá nele, num documentário, o roteiro é basicamente as perguntas aos entrevistados. Agora tu não sabe o que as pessoas vão responder, então começa a dissecar a história a partir do momento que já foi filmado. É muito difícil às vezes criar um cronograma exato, porque a gente não sabe quanto tempo vai demorar para filmar. Muitas vezes as pessoas falam coisas que tu precisa ir atrás de mais material. Então o contrato dos editores termina, e eles já têm outra coisa agendada e o documentário ainda não terminou. Por exemplo, o dos Menendez eu acho que teve dez editores no total. Acho que ficou três anos na pós-produção. Eu fui da primeira equipe de montagem e trabalhou por esses primeiros seis meses, o que foi sensacional.”
Giz: A Netflix convidou profissionais de fora para um novo olhar sobre o caso. Como você acha que sua visão se difere da deles?
Fernanda: “Eu acho que, se for transferir essa perspectiva para uma escala menor, toda vez que a gente está dentro de uma situação, está olhando com olhos internos, né? Aí conta aquela situação para uma pessoa que é totalmente desligada disso e às vezes aquela pessoa nos dá uma perspectiva completamente diferente. Essa história aconteceu nos Estados Unidos há 30 anos. Há 30 anos as pessoas vêm falando sobre isso. Acho que já existia uma opinião coletiva formada sobre a qual já não existia mais questionamentos. Mas acho que esse processo de questionamento foi uma coisa geracional. Foi como a geração Z começou a descobrir esse caso no TikTok. Eles não sabiam, isso aconteceu nos anos 90. Só que durante a pandemia o caso entrou a público… Então a geração Z começou a ter acesso a vários casos que eles não conheciam. Uma geração nova tendo acesso a uma história, vendo ela ser julgada e dizendo ‘opa, não concordo com a maneira como essa história terminou’.”
Giz: Você acredita que se o caso tivesse acontecido hoje, a repercussão e o julgamento seriam diferentes?
Fernanda: “Completamente diferente. Não acho que eles não teriam sido condenados, com certeza teriam sido condenados pelo assassinato, o que realmente aconteceu. Mas o que aconteceu nos anos 90, de o caso do abuso ter sido completamente ignorado pelo julgamento, não teria acontecido. Hoje, provavelmente, a defesa teria conseguido o que estavam pedindo, que era, ‘nós queremos que eles sejam condenados pelo assassinato. […] Mas não por assassinato premeditado, porque não premeditaram matar os pais. Eles mataram em resposta a décadas e décadas e décadas de abuso. E isso não foi levado em consideração na hora da pena.”
Giz: Você acha que existe chance da sentença ser revisada?
Fernanda: “Sim, porque a opinião pública é muito forte. Então acho que principalmente com o quanto a história viralizou, teve muitas pessoas que são influentes, não só em termos legais, mas em cultura pop… A gente tem personagens até como, por exemplo, a Kim Kardashian. Ela é advogada, mas é uma celebridade da cultura pop com quantidade absurda de seguidores. E ela é uma das pessoas, entre outras, que está solicitando a revisão da sentença. Acho que ao longo dos próximos anos, vamos ver essa história se desenvolver. Acredito que não vão passar o resto da vida na prisão.”
Giz: De onde você acredita que vem esse gosto das pessoas por crimes reais?
Fernanda: “É uma coisa bem psicológica ser fascinado pelo que o ser humano é capaz de fazer. Acho que essa coisa do true crime pega muito num medo da gente, né? Querendo ou não, o ser humano gosta de sentir emoções fortes. A gente gosta de assistir filme para chorar, para rir, para sentir medo… E o true crime nos pega em diversos tipos de emoções. É uma coisa de curiosidade mesmo, de ficar se questionando, ‘nossa, do que o ser humano é capaz?. Então, acho que esse é muito o gatilho: isso aconteceu, tal pessoa fez tal coisa. E aí aquela curiosidade te leva a descobrir todos os detalhes do caso. É quase que uma questão de autoconhecimento do ser humano, assim, essa obsessão.”
Giz: Você diria que mudou seu sentimento em relação a filmes de terror após o documentário?
Fernanda: “Sim, no sentido de que sempre que eu assistia filmes de terror, tinha uma parte racional de ficar pensando ‘isso é um filme’, para não ficar com medo. Mas quando a gente assiste a um documentário, tu tá assistindo uma coisa que é real. Porém, depois de editar muitos documentários, a gente também começa a prestar muita atenção na parte psicológica de contar uma história. Mesmo quando a gente está falando o que é verdade, a maneira em que a gente ordena e apresenta a verdade cria reações emocionais diferentes. Acho que eu fiquei muito mais perspicaz. De certa forma, acho que até estragou um pouco a minha sensação de assistir documentário, filmes de terror, porque eu estou prestando muito mais atenção hoje em dia em coisas como ‘por que essa cena tá me dando medo? Pô, porque é a música, tá escuro…’. De certa forma me fez muito bem como profissional, mas como espectadora me fez mal.”
Giz: Como é o trabalho de uma editora no dia a dia?
Fernanda: “Num documentário, o volume de material é muito grande. Então geralmente tem diversos editores e não só eles trabalham com a história. Também tem o produtor de história. Essa pessoa, esse Story Producer, ajuda os editores a desconstruir todo aquele material e encontrar o que que precisa ser feito. Muitas vezes no início do processo do Menendez, o editor sênior trabalhava em termos de encontrar estética, ritmo. E eu estava trabalhando mais diretamente com a produtora de história, selecionando coisas essenciais para a timeline. Eu estava pegando esse material e, no software, indo atrás de todos esses pedacinhos, separando tudo e fazendo um corte inicial, que depois eu passava para o editor principal e para o diretor. E eles começavam a fazer a porção deles do trabalho, então a gente tava meio que fazendo em duas etapas. É um trabalho extremamente colaborativo. É uma engenharia de peças se movendo ao mesmo tempo.”