Doença cerebral misteriosa pode estar ligada a fruta popular

Em 2013, após seguidos casos de doença em determinado período do ano, cientistas investigaram a ligação dos incidentes com a lichia

Desde 1995, centenas de crianças pobres em Muzaffarpur, na Índia, misteriosamente sofreram convulsões e sentiram sintomas de nevoeiro cerebrail, normalmente pelas manhãs. Muitas morreram pouco tempo depois. Isso acontecia todos os anos, entre maio e julho. Em 2014, por exemplo, os hospitais de Muzaffarpur receberam 390 crianças com os sintomas, resultando em 122 mortes.

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Ninguém soube o que estava causando a doença cerebral aguda, mas o momento suspeito dos surtos sugeria que pudesse ter algo a ver com a lichia, já que Muzaffarpur é uma região popular de colheita da fruta. Seria uma bactéria? Os pesticidas? Metais tóxicos?

Uma equipe internacional de cientistas revisou tanto os livros sobre o assunto quanto o surto de 2014 e descobriu que as substâncias químicas na lichia, por si só, provavelmente haviam causado a doença (mais frequentemente, em crianças que haviam passado a noite anterior sem jantar). Os resultados, publicados no periódico The Lancet Global Health, são a maior investigação feita até agora sobre o mistério de Muzaffarpur e apresentam fortes evidências de que foi mesmo a lichia que causou o surto.

A investigação começou em 2013, quando pesquisadores compilaram o máximo de estudos possível sobre a doença de Muzaffarpur. Todos os estudos do caso envolviam crianças, de seis meses a 14 anos de idade. Os pesquisadores observaram padrões, incluindo os níveis baixos de glicose no sangue das crianças afetadas. Uma pesquisa posterior, também de 2013, revelou que a lichia continha uma substância química chamada MCPG (metileno-ciclopropil-glicina), que causava níveis similares de açúcar no sangue de animais. Enfim, os cientistas encontraram casos de uma substância chamada hipoglicina A que causava sintomas neurológicos em pessoas que comiam outras frutas relacionadas à lichia, as frutas akee. Os pontos começaram a se ligar, mas nenhum estudo havia ligado o consumo de lichia a doenças cerebrais.

Os pesquisadores então acamparam nos hospitais de Muzaffarpur, fizeram testes em várias crianças que entraram com os sintomas e perguntaram aos pais sobre o estilo de vida das crianças e seus hábitos alimentares. Também coletaram lichias de pomares próximos aos locais de maior concentração de casos da doença.

Descobriu-se que, comparadas com as crianças que não sofriam dos sintomas, as crianças acometidas tinham probabilidade 9,6 vezes maior de terem comido lichia, 6 vezes maior de terem visitado um pomar de lichia e 2,2 vezes maior de ter pulado o jantar na noite anterior. As crianças doentes também tinham maior probabilidade de terem comido lichias podres ou ainda não maduras.

Tudo estava se juntando. Cerca de metade das 73 amostras de urina coletadas das crianças nos hospitais mostraram positivo para a presença de MCPG e hipoglicina A — assim como todas as lichias coletadas, com maiores concentrações nas que ainda estavam “verdes”. “Essa é a primeira confirmação de que esse surto recorrente em Muzaffarpur está associado ao consumo de lichia e à toxicidade do hipoglicino A e do MCPG”, escreveram os pesquisadores.

A história parecia incompleta. Os pais contaram aos investigadores que, durante a temporada de lichia, as crianças comiam frutas nos pomares próximos durante todo o dia e voltavam para casa sem fome para o jantar. Os cientistas acharam que o baixo nível de açúcar no sangue causado pela falta de uma refeição de verdade só foi piorado pelos efeitos da hipoglicina A e do MCPG, o que poderia ter causado os sintomas. Poderia, aliás, é o termo operativo aqui, porque ainda não é um experimento controlado provando qualquer coisa, apenas uma série de associações. Os pesquisadores decidiram que “as descobertas refletiam uma conexão causal plausível, mas não necessariamente suficiente, entre o consumo de lichia e a doença”.

Mas outros pesquisadores acreditam que o estudo definitivamente liga a doença à lichia, de acordo com um comentário escrito por Peter Spence e Valerie Palmer, da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon. O surto na Índia, e, aparentemente, casos similares no Vietnã e no Bangladesh, juntam-se em uma espécie de tempestade perfeita de desnutrição e a indústria da lichia em crescimento. “Por sorte, o custo alto dessas frutas importadas e a probabilidade de que elas sejam consumidas em pequenas quantidade por pessoas bem-nutridas sugere que há pouca razão para preocupação nos Estados Unidos”, escreveram os autores.

As autoridades agora recomendam que as crianças na área próxima a Muzaffarpur limitem seu consumo de lichias e sempre comam uma refeição à noite, e essas recomendações parecem estar funcionando. Agora, há menos de 50 casos registrados por ano, de acordo com o New York Times. Entretanto, Spencer e Palmer se preocupram que casos similares pudessem aparecer em outros lugares com muitas lichias e crianças desnutridas. Eles esperam que a indústria e os legisladores trabalhem para desenvolver orientações àqueles que planejam comer lichia.

Quanto a você, leitor, não vá comer muita lichia de estômago vazio!

[The Lancet Global Health, The Lancet Global Health]

Imagem do topo: AP

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