Nos primeiros anos de vida, o fator que pode ser modificado e ajudar a proteger da demência décadas mais tarde é a educação formal. Ela auxilia na formação da chamada reserva cognitiva, a capacidade do cérebro de lidar com lesões ao longo da vida, possivelmente por suas células formarem mais conexões entre si e o funcionamento geral acabar menos prejudicado pela perda de parte dessas ligações.

A maior parte dos fatores – no total, 10 – costuma se manifestar ou produzir impacto na idade adulta. São problemas como perda auditiva, depressão, colesterol elevado, hipertensão, tabagismo, entre outros. Já na velhice, o cérebro estaria mais suscetível aos efeitos da redução da capacidade de enxergar, da poluição do ar e do isolamento social.

“Embora a mudança seja difícil e algumas associações possam ser apenas parcialmente causais, nossa nova síntese de evidências mostra como os indivíduos podem reduzir o risco de demência”, escreveram os autores do relatório da Lancet. Segundo os pesquisadores, esse potencial de redução de risco é maior em países de média e baixa renda – e entre grupos minoritários e socioeconômicos mais baixos – do que para países de renda mais alta.

“Na América Latina, por exemplo, além de a demência ser mais prevalente, seu início ocorre mais cedo do que em outros países”, afirma o neurologista Paulo Caramelli, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é coautor de um estudo liderado pelo neurologista Ricardo Nitrini, da USP, que analisou pesquisas feitas em seis países latino-americanos, entre eles o Brasil. Publicado em 2009 na International Psychogeriatrics, o trabalho revelou que, embora a prevalência de demência na região fosse semelhante à de países desenvolvidos (7,1% das pessoas com mais de 65 anos tinham o problema), a proporção de casos era mais elevada no início da velhice. Na faixa etária dos 65 aos 69 anos, 2,4% das pessoas tinham demência na América Latina, enquanto a média mundial era de 1,2%. “Acreditamos que isso esteja relacionado à falta de diagnóstico ou de tratamento e controle adequados de problemas cardiovasculares, além da baixa escolaridade, que infelizmente é uma característica da nossa população”, explica o pesquisador da UFMG.

Em 2022, Caramelli, Suemoto, Ferri, Livingston e Nitrini recalcularam para a realidade brasileira o impacto do controle dos 12 fatores de risco apresentados nas primeiras edições do relatório da The Lancet. Se fosse possível eliminar esses fatores, haveria uma redução de 48,2% nos casos de demência. A diminuição seria de até 54% nas regiões mais pobres do país. Nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, por exemplo, a baixa escolaridade está associada a 7,7% dos casos, enquanto nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, 9,6%. Embora a fração evitável seja quase a mesma para brancos e negros (respectivamente, 47,9% e 46,9% dos casos), o peso de cada fator é diferente nessas duas populações (ver infográfico abaixo), de acordo com os dados, que integram o relatório do Ministério da Saúde e foram publicados em novembro de 2022 na Alzheimer’s & Dementia.

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Composto por dois volumes, o documento do ministério traz informações sobre estigmas associados à demência, além da sobrecarga financeira e psicológica enfrentada pelos cuidadores. Também apresenta estimativas de subdiagnóstico, que é de 50% na Europa, 60% na América do Norte e de 80% a 90% no Brasil. “Aqui, além de haver subdiagnóstico, os diagnósticos são frequentemente realizados muito tarde”, conta Ferri. “Conhecer a realidade é essencial para pensar em estratégias de ação.”

Esses e outros dados do relatório deverão orientar a implementação da Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências, sancionada em junho pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Criada em conformidade com o Plano de Ação Global para as Demências 2017-2025 da Organização Mundial da Saúde (OMS), a política estabelece 10 diretrizes, que abrangem temas como fortalecimento da atenção primária em saúde e capacitação dos profissionais desses serviços, criação de uma linha de cuidado para demências nos programas e serviços de saúde já existentes, promoção de hábitos de vida saudáveis voltados à prevenção do problema e garantia do uso de tecnologias para o diagnóstico, tratamento e monitoramento dos pacientes. “Vários motivos têm feito o tema da demência receber mais atenção nos últimos anos. Agora, é preciso criar estratégias que considerem as particularidades das regiões e das diferentes populações do país, usando os recursos que já temos e incorporando novos, para realizar a prevenção, o diagnóstico e o cuidado tanto das pessoas com demência como de seus cuidadores”, destaca Ferri.

A reportagem acima foi publicada com o título “Nuances da demência” na edição impressa nº 346, de dezembro de 2024.

Projetos
1.
O papel das óxido nítrico sintases na doença de Alzheimer (nº 21/14171-8); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Claudia Kimie Suemoto (USP); Bolsista Alberto Fernando Oliveira Justo; Investimento R$ 256.435,75.
2.
Diagnóstico nosológico de demência em população brasileira (nº 06/55318-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ricardo Nitrini (USP); Investimento R$ 123.173,15.
3.
A reserva cognitiva em uma população com escolaridade reduzida (nº 09/09134-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Wilson Jacob Filho (USP); Investimento R$ 61.876,80.
4.
Doença por grãos argirofílicos (nº 12/07526-5); Modalidade Bolsa de Doutorado Direto; Pesquisadora responsável Léa Tenenholz Grinberg (USP); Bolsista Roberta Diehl Rodriguez; Investimento R$ 46.896,43.

Artigos científicos
SUEMOTO, C. K. et al. Neuropathological lesions and cognitive abilities in black and white older adults in Brazil. JAMA Network Open. 25 jul. 2024.
DE LA MONTE, S. M. et al. Racial differences in the etiology of dementia and frequency of Alzheimer lesions in the brain. Journal of the National Medical Association. jun. 1989.
FILSHTEIN, T. J. et al. Neuropathological diagnoses of demented Hispanic, Black and non-Hispanica White decedent’s seen at an Alzheimer’s disease center. Journal of Alzheimer’s Disease. 12 mar. 2019.
GBD 2019 DEMENTIA FORECASTING COLLABORATORS. Estimation of the global prevalence of dementia in 2019 and forecasted prevalence in 2050: An analysis for the Global Burden of Disease Study 2019The Lancet Public Health. v. 7, n. 2, e105-25. fev. 2022.
BERTOLA, L. et al. Prevalence of dementia and cognitive impairment no dementia in a large and diverse nationally representative sample: The Elsi-Brazil study. The Journals of Gerontology – Series A. jun. 2023.
SUEMOTO, C. K. et al. Neuropathological diagnoses and clinical correlates in older adults in Brazil: A cross-sectional study. PLOS Medicine. 28 mar. 2017.
FERREIRA, N. V. et al. Optimal cardiovascular health is associated with slower cognitive decline. European Journal of Neurology. 28 nov. 2023.
LIVINGSTON, G. et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2024 report of the Lancet standing commission. The Lancet. 10 ago. 2024.
SUEMOTO, C. K. et alRisk factors for dementia in Brazil: Differences by region and raceAlzheimer’s & Dementia. v. 19, n. 5, p. 1849-57. 3 nov. 2022.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Relatório nacional sobre a demência: Epidemiologia, (re)conhecimento e projeções futuras. 2024.