Ciência

Edição de genes “deleta” mecanismo de contágio de infecção sexualmente transmissível

Testes em laboratório mostram que técnica CRISPR-Cas9 corta e desativa genes essenciais para a sobrevivência e multiplicação do vírus causador da HTLV
Imagens: PantheraLeo1359531/Wikimedia Commons/Domínio público; Freepik

Texto: Júlio Bernardes / Arte: Diego Facundini* / Jornal da USP

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A técnica de edição de genes CRISPR-Cas9 vem sendo pesquisada como uma ferramenta promissora para o tratamento de doenças genéticas e infecções, por “cortar” e “deletar” partes do genoma relacionadas a esses distúrbios. Pesquisadores da USP apontam, em artigo de revisão, que o método é testado para deter o contágio do HTLV, infecção transmitida por vírus em relações sexuais e transfusões de sangue, podendo em alguns casos levar a doenças graves como leucemia e problemas no sistema nervoso. Os estudos, em fase laboratorial, mostram que a edição interrompe a integração dos vírus com as células hospedeiras que usa para multiplicar-se, além de desativar genes essenciais para a sua sobrevivência.

“O HTLV é uma infecção sexualmente transmissível (IST) que se propaga principalmente por relações sexuais desprotegidas, com maior frequência de transmissão do homem para a mulher”, explicam ao Jornal da USP o pesquisador Wilson Domingues, primeiro autor do artigo, Victor Folgosi e o professor Jorge Casseb, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), orientador do trabalho. “A transmissão por vírus pode acontecer por meio de transfusões de sangue, compartilhamento de agulhas entre usuários de drogas e, verticalmente, de mãe para filho, durante a gestação, parto ou amamentação.”

Wilson Domingues - Foto: CV Lattes

Wilson Domingues – Foto: CV Lattes

Victor Angelo Folgosi - Foto: CV Lattes

Victor Angelo Folgosi – Foto: CV Lattes

Jorge Simao do Rosario Casseb - Foto: CV Lattes

Jorge Simao do Rosario Casseb – Foto: CV Lattes

“A maioria dos infectados, cerca de 90%, permanece assintomática ao longo da vida, contribuindo para uma transmissão silenciosa”, apontam Domingues, Folgosi e Casseb. “No entanto, aproximadamente 10% dos infectados desenvolvem doenças graves, como leucemia de células T do adulto, uveíte, mielopatia, além de outras condições como dermatite infecciosa, artrite e neuropatia periférica”. A uveíte é a inflamação do revestimento interior pigmentado do olho, a úvea; a mielopatia é um distúrbio do sistema nervoso que afeta a medula espinhal e a neuropatia periférica é um dano nos nervos que vão da medula espinhal até os membros, como as mãos e os pés.

“O objetivo do artigo foi revisar e discutir, de forma abrangente, os avanços e desafios associados ao uso da tecnologia de edição de genes CRISPR/Cas9 na modificação genética dos vírus retrovirais, especificamente o HTLV-1”, destacam os pesquisadores. “Através da análise crítica de estudos atuais, a publicação abordou o potencial dessa ferramenta para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas, além de destacar as limitações técnicas e éticas que ainda precisam ser superadas para sua aplicação clínica em infecções retrovirais.

De acordo com Domingues, Folgosi e Casseb, a edição de genes com CRISPR-Cas9 é uma técnica revolucionária de engenharia genética que permite modificar de forma precisa o DNA de células e organismos. “O CRISPR funciona como um mecanismo de defesa contra vírus. A proteína Cas9, associada ao CRISPR, é responsável por cortar o DNA em locais específicos”, relatam. Originalmente, o CRISPR é uma parte do DNA de bactérias. “A técnica funciona da seguinte maneira: um guia de RNA é projetado para se ligar a uma sequência específica no genoma, e a proteína Cas9 é recrutada para essa região, onde realiza um corte preciso no DNA.”

Na imagem da esquerda, reconhecimento e divisão do DNA-alvo com base no RNA de guia único (sgRNA); na direita, processos de reparo de DNA conhecidos como junção final não homóloga (NHEJ) e Reparo Dirigido por Homologia (HDR), juntamente com componentes essenciais do sistema, como o sgRNA e o motivo adjacente protoespaçador (PAM), que permite reconhecer o DNA-alvo

Na imagem da esquerda, reconhecimento e divisão do DNA-alvo com base no RNA de guia único (sgRNA); na direita, processos de reparo de DNA conhecidos como junção final não homóloga (NHEJ) e Reparo Dirigido por Homologia (HDR), juntamente com componentes essenciais do sistema, como o sgRNA e o motivo adjacente protoespaçador (PAM), que permite reconhecer o DNA-alvo – Foto: cedida pelos pesquisadores

Reparo Celular

“O processo de reparo celular pode então ser direcionado para correções ou inserir novas sequências de DNA”, descrevem os pesquisadores. “A edição pode ocorrer por meio de dois mecanismos principais de reparo: a especificidade de extremidades não homólogas [não semelhantes entre si], que pode introduzir lesões de perda de função, ou o reparo dirigido por homologia, que permite a inserção de uma nova sequência de DNA no local cortado”, descrevem os pesquisadores.

“A CRISPR-Cas9 apresenta diversas aplicações potenciais, incluindo terapia gênica para correção de mutações genéticas em doenças hereditárias, modificação de células imunes em tratamentos oncológicos e combate a doenças infecciosas como HIV e HTLV-1 para eliminar DNA viral de células hospedeiras”, ressaltam os pesquisadores. “Além disso, é amplamente usado na criação de modelos de doenças e no melhoramento genético de plantas, promovendo resistência a pragas e aumento de produtividade. Em biotecnologia, CRISPR-Cas9 otimiza a produção industrial de biofármacos e biocombustíveis, com potencial futuro de prevenir doenças hereditárias em embriões.”

Segundo os pesquisadores, os estudos sobre o uso da edição dos genes CRISPR-Cas9 para deter a infecção pelo HTLV-1 estão em projetos iniciais, com foco principalmente em experimentos in vitro e em modelos celulares testados em laboratório. “As pesquisas têm explorado a capacidade do CRISPR-Cas9 para interromper a integração do HTLV-1 no genoma de células hospedeiras ou para desativar genes virais essenciais”, relatam. “Além disso, a dificuldade em desenvolver métodos de entrega do sistema CRISPR-Cas9 em células-alvo específicas, como células T infectadas, e a ausência de ensaios clínicos robustos [com grande número de pacientes] ainda limitam o avanço para aplicações clínicas.”

“Pesquisas futuras focam no desenvolvimento de técnicas que aumentem a eficiência e a precisão da edição genética, como o desenho de novos gRNAs [sequências de RNA que guiam o corte do DNA no processo de edição] e a utilização de métodos de entrega mais eficientes”, observam Domingues, Folgosi e Casseb. “Portanto, embora os estudos estejam avançando, ainda são necessários maiores progressos para que o CRISPR-Cas9 seja aplicado como uma terapia viável contra o HTLV-1.”

O estudo foi desenvolvido no IMT, sob a supervisão do professor Jorge Casseb. A pesquisa conta ainda com a colaboração da professora Shirley Komninakis, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Retrovírus, sediado na FMUSP e cujo site pode ser acessado aqui, e da professora Simone Kashima, do Centro de Terapia Celular (CTC) da USP, com sede no Hemocentro de Ribeirão Preto, além de pós-graduandos da USP e Unifesp. O artigo de revisão Novel approaches for HTLV-1 therapy: innovative applications of CRISPR-Cas9 foi publicado na Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo no último dia 24 de agosto.

Mais informações: e-mails wildomingues@alumni.usp.br, com Wilson Domingues, e jcasseb@usp.br, com o professor Jorge Casseb

*Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado

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