Estudo associa baixa atividade de enzima ao desenvolvimento de microcefalia em prole infectada pelo zika
Texto: Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP
Estudo publicado no Journal of Neurochemistry revela que camundongos infectados pelo vírus zika durante a gestação e que desenvolveram microcefalia apresentam menor atividade de uma enzima chamada Ndel1 – importante para processos de proliferação, diferenciação e migração dos neurônios durante o desenvolvimento embrionário.
A descoberta, já patenteada, pode, no futuro, servir de base para o desenvolvimento de um biomarcador para o diagnóstico precoce de microcefalia em bebês infectados pelo zika no período embrionário.
“Não temos bons biomarcadores para o diagnóstico precoce [ainda na fase embrionária] da síndrome congênita associada à infecção pelo zika. A descoberta dessa relação entre a atividade enzimática e o tamanho encefálico é só o começo do caminho, mas traz muitas esperanças. Atualmente, o diagnóstico se limita a medir o tamanho do cérebro por ultrassonografia ou tomografia. Ou então se baseia nas medidas imprecisas da circunferência do crânio após o nascimento, quando há poucas possibilidades de se reverter o quadro”, comenta Mirian Hayashi, professora do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp) e coordenadora da pesquisa.
Apoiada pela FAPESP, a investigação foi conduzida em parceria com o grupo liderado por Patrícia Garcez na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os resultados também apontaram efeitos positivos do tratamento com o interferon-beta – fármaco utilizado para esclerose múltipla e que tem sido testado em animais infectados por zika. Nos experimentos com camundongos, o medicamento evitou problemas no desenvolvimento neuronal, além de restabelecer a atividade da enzima Ndel1 a níveis similares aos de roedores não infectados.
Modelo experimental
A equipe analisou a atividade de Ndel1 em animais infectados pelo vírus zika. Desenvolvido pelos pesquisadores da UFRJ, o modelo experimental permitiu que os pesquisadores correlacionassem a infecção com a atividade enzimática e a ação do interferon-beta em diferentes fases do desenvolvimento embrionário, determinando assim os riscos de distúrbios do neurodesenvolvimento.
“Observamos que a infecção está associada a uma redução na atividade da enzima Ndel1 no encéfalo dos animais. Pudemos variar condições como, por exemplo, injetar o vírus no ventrículo dos embriões ainda no útero da mãe. Também variamos a carga viral e os diferentes estágios de desenvolvimento do embrião, o que sugere que a atividade enzimática tenha um excelente poder diagnóstico”, afirma João Nani, bolsista da FAPESP e coautor do estudo.
O pesquisador ressalta ainda que não necessariamente uma atividade baixa da enzima significa menor expressão ou menor quantidade proteica da enzima. “Nesse estudo, sugerimos que a atividade enzimática pode estar relacionada a dois fatores: à quebra de substâncias químicas produzidas por células cerebrais [clivagem de neuropeptídeos, questão que ainda precisa ser comprovada em estudos in vivo], ou à capacidade dessa enzima de interagir com outras proteínas. Essa é uma enzima de grande interação com proteínas importantes e a diminuição de sua atividade pode alterar dinâmicas moleculares importantes”, diz.
Infecção materno-fetal
Como lembra Hayashi, a infecção pelo vírus zika durante a gestação pode causar uma série de malformações na prole, entre elas a microcefalia. No entanto, vale destacar que um conjunto de diferentes fatores pode culminar em microcefalia ou em outros danos cerebrais durante a gravidez, incluindo aqueles desencadeados por infecções como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes simples, por exemplo.
“Por que decidimos investigar essa enzima em casos de infecção por zika? Porque ela é um excelente modelo para infecções materno-fetais no geral. Sabemos que a infecção tende a disparar uma série de respostas e, na gravidez, isso pode trazer complicações para a embriogênese”, explica.
Os pesquisadores contam que a enzima Ndel1 vem sendo muito estudada, sobretudo por sua importância para o desenvolvimento neurológico e de doenças como esquizofrenia e depressão. Isso porque, ressalta Hayashi, ela está associada à formação de complexos no citoesqueleto intracelular do neurônio e na proliferação, diferenciação e migração dos neurônios durante a embriogênese, que são processos cruciais para a formação do cérebro.
Exemplos dessa interação com proteínas do citoesqueleto foram demonstrados, como é o caso da sua associação à proteína LIS1, que leva a uma doença chamada lisencefalia, ou cérebro liso, em que a criança nasce sem os giros corticais. A Ndel1 também é uma das principais ligantes do gene de suscetibilidade de esquizofrenia mais estudado, denominado DISC1 (Disrupted-in-Schizophrenia 1).
Estudos anteriores demonstraram ainda que mutações no geneNDE1 (que codifica uma proteína semelhante à Ndel1, chamada de NDE1) foram associadas a casos graves de microcefalia. Experimentos com modelos animais evidenciaram que a inativação do gene NDE1 ou da enzima Ndel1 inibe a migração neuronal no começo da formação do embrião.
“Demostramos também uma atividade significativamente menor da Ndel1 em indivíduos com primeiro episódio de psicose sem tratamento prévio com antipsicóticos e em pacientes medicados com esquizofrenia crônica. O que sugere, mas ainda não foi possível comprovar, que a atividade da enzima Ndel1 é um potencial biomarcador de estágios iniciais e de resistência ao tratamento na esquizofrenia”, afirma Hayashi.
O estudo Assessing the role of Ndel1 oligopeptidase activity in congenital Zika syndrome: Potential predictor of congenital syndrome endophenotype and treatment response pode ser lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/jnc.15918.