O exoesqueleto de Miguel Nicolelis, um ano depois
Em 12 de junho de 2014, começava a Copa das Copas: era uma época mais inocente, sem escândalos na FIFA nem o doloroso 7×1. O evento prometia mostrar o exoesqueleto que o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis e sua equipe preparavam há anos – mas ele apareceu por menos de dois segundos.
Um ano depois, após toda a superexposição na Copa, o que aconteceu com o projeto Andar de Novo? Segundo Nicolelis, ele continua firme e forte, e já foi apresentado em congressos ao redor do mundo – mas os resultados ainda não saíram em um periódico científico.
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O exoesqueleto
O exoesqueleto se chama BRA-Santos Dumont 1. Ele recebe comandos em tempo real lendo a atividade cerebral capturada por EEG (eletroencefalografia), e fornece aos pacientes o feedback tátil de estarem andando: o equipamento possui placas flexíveis com sensores de pressão, temperatura e velocidade. Há módulos que sustentam e movem as pernas, mais um backpack de controle.
O BRA-Santos Dumont 1 foi testado durante 17 meses: oito pacientes da AACD com lesão medular total participaram dos testes clínicos. O projeto Andar de Novo é financiado em parte pelo Finep, órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que pagou R$ 33 milhões.
Em abril de 2014, “o primeiro paciente conseguiu caminhar com o exoesqueleto, usando somente a atividade cerebral para comandar o equipamento”, segundo a equipe do projeto. Todos conseguiram andar, caminhando em média 120 passos em cada interação com o exoesqueleto.
No mês seguinte, a equipe de Nicolelis anunciava que “atingiu todos os seus objetivos científicos, clínicos e tecnológicos” de sua primeira fase, deixando todos ansiosos para ver o exoesqueleto na abertura da Copa.
A apresentação
Eu acompanhei a abertura da Copa ao vivo, na TV, e estava pronto para ficar emocionado ao ver o exoesqueleto em ação, exibido para mais de 1 bilhão de pessoas. Em vez disso, eu me distraí por um segundo e perdi o momento. O evento acabou e todos se perguntaram: era só isso mesmo?
Juliano Pinto, de 29 anos, era um dos oito pacientes adultos da AACD, e deu o pontapé inicial. Ele foi levado para uma extremidade do campo de futebol com auxílio de um carrinho motorizado. Juliano usava o pesado traje robótico e o controlava através de uma touca de EEG.
O momento não durou quase nada na TV:
Isso também foi exibido pela Rede Globo e, só uma hora depois, os comentaristas da TV mencionaram o exoesqueleto.
Compare isso a este vídeo divulgado hoje por Nicolelis no Facebook, gravado minutos antes da apresentação:
No vídeo, as luzes azuis servem para indicar que o exoesqueleto está ligado e pronto para receber o comando mental de Juliano. Quando as luzes ficam verde-amarelas, elas mostram o caminho percorrido pelo comando mental, saindo do cérebro e chegando aos pés do exosqueleto.
No dia da abertura, há um ano, Nicolelis divulgou vários vídeos mostrando o exoesqueleto sendo usado para andar e chutar a Brazuca:
O que aconteceu no evento? Nicolelis disse que a culpa era da FIFA:
A FIFA deveria responder pela edição das imagens que impediu q a demonstração fosse transmitida na integra. Responsabilidade é tda dela.
— Miguel Nicolelis (@MiguelNicolelis) June 13, 2014
A entidade afirmou na época que concedeu 30 segundos para a demonstração “e isso foi cumprido”, mas não garantia exibir tudo na íntegra pela TV porque isso “não dependia da federação”. A FIFA ainda disse que deixou o exoesqueleto em um canto do gramado para não danificar o campo.
Em agosto, Nicolelis comentou o caso em uma entrevista à Rolling Stone:
[A Fifa e o comitê local] só queriam o chute, o pontapé oficial. Mas aí fomos transferidos de última hora para a cerimônia de abertura, não para antes do jogo, como era o plano inicial, no meio do campo. A Fifa não queria no gramado o peso do carrinho de golfe que levaria o exoesqueleto. Mas aí, acho que menos de um mês antes do evento, chega a notícia de que agora seriam 30 segundos, porque a cerimônia estava muito apertada. E no último e-mail que a gente recebeu tínhamos 29 segundos!
(…) Tenho e-mails aqui da Fifa que vão chocar muita gente se um dia forem publicados. Certos aspectos vou contar um dia, espero. Por exemplo, como a gente foi tratado no dia a dia, ou quando a gente foi lá para o estádio e ficou trancado numa salinha.
Um ano depois
Hoje, Nicolelis publicou no Facebook um texto sobre o que aconteceu desde então com o projeto Andar de Novo.
Ele diz que o exoesqueleto teve um impacto positivo na saúde dos pacientes: houve melhora da função cardiovascular, gastrointestinal, aumento de massa muscular, entre outros.
Além disso, os pacientes apresentarem melhora na sensibilidade tátil e no controle voluntário motor – coisas importantes para quem está paraplégico.
Os testes continuam “sem interrupção”, diz Nicolelis, com o mesmo grupo de pacientes da primeira fase. A ideia é expandir o número de pessoas atendidas e, ao mesmo tempo, publicar os resultados em revistas científicas. Quanto a isso, ele afirma:
Em paralelo, estamos submetendo os resultados científicos e clínicos para publicação nos mais conceituados periódicos científicos mundiais. Assim que eles sejam publicados, os nossos resultados serão amplamente divulgados à sociedade.
Essa era uma reclamação dos críticos de Nicolelis. Edward Tehovnik, neurocientista americano da UFRN, disse na época que “trabalho científico é feito por pesquisadores que publicam seus trabalhos, recebem críticas de seus pares e, assim, melhoram suas descobertas… não há como saber se o que Nicolelis mostrou na Copa é, realmente, um avanço científico”.
Em novembro, cientistas do projeto Andar de Novo apresentam os primeiros resultados no Encontro Anual da Sociedade Americana de Neurociência, a Society for Neuroscience (SfN).
É possível encontrar um resumo de quatro desses estudos neste link. Um deles trata especificamente do exoesqueleto:
Como parte do projeto Andar de Novo, foi projetado um moderno exoesqueleto robótico para permitir que pacientes com lesão medular realizem a locomoção dos membros inferiores através de atividade cerebral. Geradores hidráulicos foram usados para controlar 15 graus de liberdade do exoesqueleto.
Correções de trajetória em tempo real foram calculadas a partir de dados recolhidos por giroscópios, medidores de tensão, sensores de força-torque e de pressão posicionados ao longo dos membros do exoesqueleto, dando-lhe a capacidade de girar lateralmente para estabilizar o seu centro de massa.
No entanto, os resultados não passaram pela revisão por pares (peer review), ou seja, não houve um escrutínio de especialistas do mesmo escalão que o autor. Essa arbitragem é obrigatória para publicar artigos científicos em revistas conhecidas – como Nature ou Science – o que ainda está por acontecer. Vale lembrar que Nicolelis já publicou estudos em veículos de alta reputação como Nature e Neuron, então isso pode ser questão de tempo.
Promessas
Outro motivo de críticas a Nicolelis são as enormes promessas que ele vem fazendo ao longo dos anos. Em 2013, ele já dizia à Wired: “estamos próximos de tornar obsoletas as cadeiras de rodas”. Diversos cientistas (e adversários) vêm criticando essa atitude.
Vimos isso quando Nicolelis comentava sobre apresentar o exoesqueleto na Copa: desde 2011, ele prometia “uma veste robótica que poderá fazer que tetraplégicos voltem a andar, usando só a força do pensamento”.
Poucos meses antes da Copa, Nicolelis passou a dizer que um paraplégico (não tetraplégico) iria “se levantar de uma cadeira de rodas… caminhar até o centro do campo… e finalmente chutar a bola”. Este vídeo mostrava o que esperar:
Alguns dias antes da abertura da Copa, o projeto Andar de Novo não mencionava mais que o paciente iria levantar nem caminhar, e foi isso o que vimos:
Desde então, as promessas mirabolantes pararam. No comunicado de hoje, o neurocientista diz apenas que “estamos empenhados na continuidade das nossas pesquisas clínicas”, sem estipular prazos: “assim que eles sejam publicados, os nossos resultados serão amplamente divulgados à sociedade”.
No momento, Nicolelis está divulgando o livro “O Cérebro Relativístico”, escrito com o matemático e filósofo Ronald Cicurel. Combinando argumentos matemáticos, computacionais, neurobiológicos e evolucionários, eles pretendem responder à seguinte pergunta: os computadores digitais podem simular as funções mais elaboradas do cérebro humano?
Além disso, o neurocientista planeja inaugurar o Campus do Cérebro, em construção na cidade de Macaíba (RN), no segundo semestre deste ano. O centro fará pesquisa de ponta e dará educação científica para alunos da rede pública. No ano passado, cientistas criticaram o projeto por receber um enorme volume de recursos do Ministério da Educação – quase R$ 250 milhões.