Nicolelis, a Copa e o futuro do cérebro

Ainda sabemos muito pouco sobre a nossa massa encefálica. Mas o que sabemos pode ser capaz de transformar profundamente o mundo em que vivemos. Houve um tempo em que se acreditava que era possível entender o cérebro a partir de pedaços dele. Os cientistas acreditavam que ele fosse como um motor, uma máquina como tantas […]

Ainda sabemos muito pouco sobre a nossa massa encefálica. Mas o que sabemos pode ser capaz de transformar profundamente o mundo em que vivemos.

Houve um tempo em que se acreditava que era possível entender o cérebro a partir de pedaços dele. Os cientistas acreditavam que ele fosse como um motor, uma máquina como tantas outras que existem no mundo e que podem ser decifradas através do estudo de suas partes.

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O caso mais célebre foi o estudo da massa encefálica de Albert Einstein. Durante alguns anos, muitos pesquisadores acreditaram que o segredo da genialidade estava no tecido morto do homem que transformou tudo o que se sabia de física. Não estava. Foram décadas de estudo sobre o cérebro de Einstein, e o que restou foram apenas hipóteses inconclusivas sobre plasticidade cerebral. O cérebro do gênio seria bastante desenvolvido em algumas áreas ligadas a raciocínio lógico.Porém, essa hipótese também se enfraqueceu ao longo do tempo porque outra linha de pesquisas se mostrou insuficiente.

Durante muito tempo, os cientistas acreditaram que o cérebro fosse uma máquina com áreas muito bem delimitadas, em que cada região tivesse uma função específica. De novo, valia a metáfora da máquina. Essa teoria também vem perdendo força.

As descobertas mais recentes revelam que o cérebro é uma estrutura elétrica que se revela viva, em movimento, e distribui tarefas em padrões difíceis de compreender. O físico Michio Kaku, no livro “The future of mind”, um dos principais livros sobre o que nos faz tão humanos, chega à conclusão de que o cérebro se parece muito com uma grande organização, em que há vários lugares tomando várias decisões, com algum comando central. De qualquer forma, é cedo para saber. É nesse cenário que o projeto “Andar de Novo”, do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, se insere.

O controverso projeto de colocar alguém para andar na abertura da Copa do Mundo está no meio de um dos maiores debates científicos das últimas décadas.

Chip no cérebro

Parece coisa de ficção científica, mas é bem real. Vários cientistas nos EUA e na Europa decidiram estudar o cérebro em movimento, captando a atividade cerebral de fora para dentro, com o uso de eletrodos colocados sobre o couro cabeludo, e de dentro para fora, com chips implantados dentro do cérebro.

Isso revelou uma série de padrões cerebrais e revolucionou a forma de entender o cérebro. Em vez de áreas muito especializadas, esses estudos revelaram uma organização que distribui funções para vários setores diferentes. É quase como uma grande corporação. A única diferença é que uma corporação parece feita para não funcionar. O cérebro, por sua vez, incrivelmente, funciona. Portanto, em vez de estudar partes de um computador para saber como ele funciona, os cientistas olharam para a máquina toda, aberta, funcionando. E é aí que começa uma história bem verde e amarela.

O cientista brasileiro Miguel Nicolelis, que se tornou uma celebridade na ciência, é um pioneiro nesse campo. A tecnologia criada por ele é promissora porque capta padrões no momento em que eles ocorrem. Ela admite que o cérebro é uma máquina elétrica com padrões ainda desconhecidos. E isso pode render algo muito além da nossa Copa.

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A Copa da Ciência

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A Argentina tem quatro prêmios Nobel na sua galeria. O México, três. Chile, Colômbia, Costa Rica e Peru tem um cada um. O Brasil não tem nenhum. Miguel Nicolelis, um grande fã de futebol, despontou como a maior esperança do Brasil para mudar esse jogo. A partir do seu laboratório na Universidade Duke, nos EUA, ele se tornou uma referência mundial em novos estudos sobre o cérebro. Em vez de tecer elucubrações sobre o cérebro, Nicolelis sempre foi um sujeito prático. Ele queria ver as coisas funcionando, na hora.

“Nicolelis é um cientista público extraordinário”, afirma um dos seus discípulos, o espanhol Jose Carmena, hoje professor na Universidade da California-Berkeley e co-diretor do Centro para Engenharia Neural e Próteses da instituição. “Ele une o rigor científico ao compromisso em resolver problemas práticos. Esses problemas atingem as pessoas que, no final das contas, financiam as nossas pesquisas com o dinheiro dos impostos delas”, elogia Carmena.

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Nicolelis e sua rede internacional de laboratórios, espalhados em várias partes do mundo, incluindo o laboratório de Natal, no Brasil, estão na linha de frente das pesquisas sobre o cérebro e têm uma metodologia muito clara para defender seus objetivos. Eles defendem a ideia de que é possível mapear a atividade cerebral com pequenos eletrodos implantados na massa encefálica, canalizar esses padrões e fazer com que eles comandem máquinas. Os feitos mais impressionantes dele e do seu time habilidoso, uma espécie de Barcelona da neurociência, foram feitos nesta linha.

Em 2000 e 2002, o cérebro de um macaco comandou um braço mecânico. Foi um assombro, mas apenas o primeiro. Em 2008, ele colocou um chip no cérebro de um macaco e o conectou à internet. Pela rede, o macaco mandou sinais para o Japão e passou a comandar um robô, como se a máquina fosse uma extensão do seu corpo. Já em 2013, ele também conseguiu outro feito: fazer com que o cérebro de um macaco comandasse braços virtuais e os sentisse como se fossem dele. No que foi um dos seus anos mais produtivos, Nicolelis também conseguiu conectar o cérebro de dois ratos, um em Duke e outro em Natal, sempre com eletrodos e sinais emitidos via internet. O primeiro rato foi ensinado a apertar uma alavanca sempre que via uma luz vermelha. O segundo, a apertar uma alavanca sempre que recebesse um sinal recebido via implante. É o primeiro passo para criar, por exemplo, uma internet cerebral. Mais um golaço.

Todos esses feitos pavimentam um caminho claro para o Nobel. Só que, tal como o cérebro, as coisas não são tão simples assim. Ciência também é corrida contra o tempo – e contra os adversários.

Entre os principais rivais de Nicolelis está Andrew Schwartz, da Universidade de Pittsburgh. Em 2008, ele fez com que um macaco controlasse um braço mecânico a partir de chips implantados no cérebro e levasse comida até a boca. No rápido campo da neurociência e da neuroengenharia, o importante não é apenas conectar o cérebro a uma máquina, mas garantir que os movimentos sejam os mais naturais possíveis. Schwartz conseguiu. Já em 2012, ele fez com que uma mulher paralisada, por causa de um problema genético, fosse capaz de controlar um braço mecânico apenas a partir de sinais emitidos pelo cérebro, o que foi visto como um marco tremendo na superação da paralisia. Outro grande rival de Nicolelis é John Donoghue, da Universidade Brown. Ele é um dos neurocientistas mais respeitados do mundo e tem conseguido fazer com que pessoas paralisadas movimentem cursores no computador apenas com o poder da mente.

Como se não bastasse, recentemente, tanto os EUA quanto a União Europeia lançaram projetos bilionários para estudar e compreender o cérebro humano. São programas rivais, empenhados em uma corrida para ver quem consegue decifrar os segredos do cérebro mais rápido.

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Correndo por fora, uma corrente de cientistas defende o uso de técnicas sem implantes. Eles estão em várias universidades do mundo, ofuscados pelo brilho dos seus amigos mais célebres. Sua crítica geral é a de que os eletrodos param de funcionar rapidamente logo depois de implantados. Eles funcionam muito bem apenas para demonstrações. Essas pessoas usam uma técnica que Nicolelis sempre criticou, o EEG. Ela é menos precisa, mas mais estável.

E aqui começam os problemas de Nicolelis e os seus atritos com grande parte da comunidade científica – e que tem um impacto grande nos estudos do cérebro. Para o show da Copa, em que uma pessoa paralisada vai andar de novo, Nicolelis usou a técnica que sempre criticou. E vai usá-la não por convicção, mas porque era a mais rápida para cumprir os prazos estabelecidos pelo governo, como admitiu recentemente à imprensa Alan Rudolph, vice-presidente para pesquisa da Universidade Estadual do Colorado e coordenador do projeto Andar de Novo. O brasileiro vai entrar em campo com o gosto amargo de quem teve de fazer uma enorme concessão. É como se ele tivesse feito uma concessão científica para atingir um objetivo midiático. E isso teve consequências científicas.

As pancadas contra o milagre de Nicolelis foram duras – e vieram dos maiores rivais. “Tudo o que você vai ver na demonstração será robótica de fantasia, não o controle do cérebro, e provavelmente vai tudo ser pré-programado”, criticou Schwartz, um dos maiores rivais do brasileiro, à revista do MIT. Para ele, os usuários não terão controle total sobre o robô. “É preciso ter expectativas realistas. Nós avançamos muito, mas estamos muito longe de devolver os movimentos a uma pessoa paralisada”, me contou Donoghue, também rival do brasileiro “Quando o espetáculo terminar, as pessoas que o professor Nicolelis ensinou a usar os exoesqueletos vão voltar às cadeiras de rodas. Elas não vão recuperar os movimentos”, concluiu.

O brasileiro Sergio Neuenschwander , que trabalhou com Nicolelis durante algum tempo, e foi pesquisador do conceituado instituto Max-Planck, na Alemanha, é ainda mais cauteloso. Quando questionado sobre o “Andar de Novo”, ele faz questão de enfatizar seu respeito por Nicolelis, mas é cético quanto às promessas feitos pelo professor. “A gente sabe muito pouco sobre os padrões do cérebro, se é que eles existem. Tem muita água para passar embaixo dessa ponte”, explica ele.

O próprio Nicolelis já admitiu que a pessoa não terá controle total sobre a máquina. Porém, os limites do EEG parecem ser muito maiores do que a empolgação do brasileiro. Guy Chéron, pesquisador da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, recebeu o equivalente a R$ 15 milhões em financiamento para desenvolver um exoesqueleto controlado por EEG, semelhante ao do próprio Nicolelis. O resultado foi divulgado o ano passado, e é ruim. À revista do MIT, ele disse. “Não estamos convencidos de que o movimento está ligado a sinais neuronais reais. Eu acho que estamos longe disso”, afirmou. “É o meu sonho, mas continua a ser um sonho. E Nicolelis sabe muito bem qual é o problema”, concluiu. À Folha de S.Paulo, em maio deste ano, ele explicou que um dos principais problemas de usar o EEG é “extrair os sinais que importam do fluxo de atividades do cérebro a fim de controlar as estratégias de caminhada”. É como se Nicolelis quisesse gravar um show de jazz do lado de fora da casa de espetáculo. Pode até pegar o som da banda, mas vai vir muito ruído da plateia junto.

Uma das análises menos apaixonadas desse ambiente científico vem de Claudio Mello, outro neurocientista brasileiro com uma longa e respeitada carreira nos EUA. Ele foi colega de muitos anos de Nicolelis e hoje é cientista da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon, nos EUA. Para Mello, independente do método, o importante é devolver alguns movimentos para as pessoas. Mas ele faz uma ressalva.“É importante ter objetivos ousados. Muitas vezes é assim que a ciência e a tecnologia avançam, com visionários”, afirma ele. “Só que eu acho complicado dizer que um objetivo médico específico poderá ser alcançado dentro de um prazo determinado, principalmente porque pode causar uma falsa ilusão no paciente”. A questão, portanto, não é só de tecnologia. É o tamanho da expectativa que será criada – e que não poderá ser saciada. A tecnologia ainda não está pronta.

O estado da arte sobre o cérebro, hoje, é que ele tem padrões. Transformar esses padrões em tecnologias que realmente farão a diferença nas pessoas é que são elas. Isso pode render um Nobel – a Nicolelis ou não. Mas o fato é que ele é uma das pessoas que está transformando o presente – e o futuro.

O que vem por aí?

Embora exista toda essa discussão científica, o fato é que as novas linhas sobre pesquisa cerebral podem abrir um mundo vastíssimo de possibilidades – e já vem abrindo. Se um dia for realmente possível implantar um chip na cabeça de alguém e mantê-lo funcionando por mais tempo do que existe hoje, as possibilidades serão tremendas. É fácil entender a empolgação de Nicolelis e de outros cientistas. Michio Kaku, que descreveu o brasileiro como uma das figuras mais impressionantes da ciência dos últimos anos, levantou uma série de possibilidades, que já estão sendo testadas.

Há várias pesquisas tentando fazer com que uma pessoa saiba o que outra pessoa está pensando. Com eletrodos sofisticados, às vezes colocados sobre o couro cabeludo, às vezes implantados dentro do cérebro, eles captam os sinais e enviam uma mensagem para um computador. Esse computador envia o sinal para o cérebro da outra pessoa. Então uma pessoa consegue saber se a outra está pensando num carro ou num cavalo, por exemplo. Outras pesquisas buscam resultados mais precisos colocando eletrodos em amplas áreas do cérebro. Elas buscam resultados ainda mais ambiciosos.

Esses eletrodos mandam sinais para os computadores a partir da identificação de padrões de atividade cerebral. As máquinas decodificam o sinal e enviam a mensagem para o eletrodo implantado no cérebro do interlocutor. Assim, duas pessoas podem se comunicar apenas com a mente, sem emitir um único som. Em vez de saber se a outra pessoa está pensando num cavalo ou numa mariposa, você pode saber se ela está pensando em uma corrida de cavalos e se pretender apostar no Jóquei. Ai, a discussão de privacidade que temos hoje nas redes sociais vira coisa de criança.

Tudo isso leva a uma conclusão natural: podemos ter educação instantânea. Cientistas da Darpa, órgão ligado ao departamento de defesa dos EUA, estão trabalhando em projetos para implantar conhecimentos direto no cérebro. Com um chip, você aprende a tocar piano. Ou a se tornar um especialista em desarmamento de bombas. Ou a ser um super soldado. Eles não estão para brincadeira. Até porque imagine uma superinteligência implantada em supersoldados?

Sim, porque os exoesqueletos hoje ainda são bastante primitivos. Mas os próximos, no futuro, podem ser infinitamente melhores, mais fortes e… dificílimos de manejar. Seria preciso seguir um manual digno de pilotos de avião. Porém, dependendo do que o futuro nos oferecer, será muito mais simples. Você será capaz de controlá-lo perfeitamente, dando ordens vindas diretamente do seu cérebro. O robô vai obedecer apenas à sua mente. Esses são alguns dos planos da Darpa…

E qual a próxima consequência disso? Guerra à distância. Ok, não serve só para conflitos armados. Mas imagine um futuro no qual a linha de frente de policiais ou soldados será formada por robôs. Eles então serão controlados de muito longe por pessoas bem treinadas, com uma infinidade de informações à disposição. E tudo isso será feito com cérebros conectados à internet, por chips que vão se comunicar com os robôs combatentes. De certa forma, é isso que as pesquisas mais recentes permitem prever.

[Imagens via e via]

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