Ciência

Fotografias permitem estudar fósseis destruídos no incêndio do Museu Nacional

Pesquisadores descreveram espécies de aves a partir de imagens de alta resolução
Imagem: Herminio Ismael Araujo Junior / MN-UFRJ (fóssil) | Luciano Massa (foto da ema)

Texto: Enrico Di Gregorio/Revista Pesquisa Fapesp

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Na noite de 2 de setembro de 2018, chamas causadas por um curto-circuito na rede elétrica do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ) se espalharam rapidamente pela parte interna do prédio e consumiram 90% do acervo científico da instituição, formado de peças geológicas, arqueológicas, etnográficas, zoológicas e paleontológicas – no caso dos fósseis, cerca de 40% foi perdido. Desde então, pesquisadores se organizaram para tentar recuperar, de diversas formas, objetos que não foram destruídos.

Enquanto alguns deles escavaram as cinzas em busca do que não tinha sido totalmente queimado, outros conseguiram achar, em fotografias guardadas em acervos digitais, registros em alta qualidade de uma parte do material perdido. Foi a partir de imagens que paleontólogos descobriram espécies às quais pertenciam seis fósseis de aves, conforme descrito em um artigo publicado em julho na revista Journal of Ornithology.

As peças eram ossos dos pés: um fragmento do tarsometatarso e quatro falanges, uma delas conectada a uma pontiaguda garra das aves antigas. No dia do incêndio, as peças estavam em uma estante na Coleção de Paleovertebrados do museu e foram completamente destruídas pelas chamas.

Para estudar o material, os pesquisadores fotografaram, na mesma escala e posição, outros materiais ósseos de aves parecidas e compararam os esqueletos. A conclusão foi de que o tarsometatarso perdido um dia pertenceu a uma ema (Rhea americana) e as falanges a aves de rapina da família dos acipitrídeos, que reúne águias, harpias e gaviões, por exemplo. A presença das emas indica que, no passado, a região onde agora é o interior do Ceará tinha uma vegetação esparsa, como a paisagem atual do Cerrado e da Caatinga. “Os acipitrídeos vivem ali até hoje. Já as Rhea desapareceram por um período, mas foram reintroduzidas e hoje também podem ser encontradas”, diz o paleontólogo João Paulo da Costa, estudante de doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e primeiro autor do artigo.

Para a paleontóloga Luciana Carvalho, do Museu Nacional, o método é confiável. Ela não participou do estudo, mas é responsável pela curadoria da coleção de fósseis de vertebrados da instituição. “As fotografias podem, sim, servir para análise. O importante é que sejam de boa qualidade, tenham sido tiradas de vários ângulos do fóssil e não sejam muito editadas.”

Além das conclusões científicas, a pesquisa mostra a importância dos registros fotográficos e dos acervos digitais de coleções fossilíferas. “É uma forma de proteger as informações”, defende Costa. Antigamente, na paleontologia, registros desse tipo eram impossíveis. Quando paleontólogos queriam registrar seus fósseis, apelavam para desenhos científicos feitos à mão.

Alguns dos ossos fotografados eram de aves de rapina, como esse gavião-de-coleira

Alguns dos ossos fotografados eram de aves de rapina, como esse gavião-de-coleira. Imagem: Herminio Ismael Araujo Junior / MN-UFRJ (fóssil) | Luciano Bernardes (foto do avião-de-penacho)

Agora há câmeras fotográficas, e também aplicativos de celular que permitem aos paleontólogos fazer modelos digitais e tridimensionais dos fósseis. No Museu Nacional, atualmente os pesquisadores usam vários desses métodos para digitalizar a coleção que sobreviveu ao incêndio. Contudo, de acordo com Carvalho, ainda não é possível ter uma dimensão precisa de quanto do material perdido já havia sido fotografado.

Em São Paulo, iniciativas semelhantes ocorrem no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP). “O MZ-USP está começando a construir um acervo digital do seu material paleontológico e neontológico [relacionado a organismos que ainda existem] com o uso de máquinas fotográficas e tomógrafos”, afirma o paleontólogo Hussam Zaher, diretor do museu.

A questão é que a digitalização do acervo cria facilidades e desafios ao mesmo tempo, uma vez que o processo demanda tempo e protocolos de registro e análise. No Museu Nacional, as estantes de fósseis de vertebrados ocupam um espaço de 105 metros quadrados (m2). “É uma coleção muito grande e temos falta de equipamentos, espaço e profissionais”, afirma Carvalho. Zaher acrescenta que, mesmo com a melhor tecnologia, os exemplares digitais não substituem os físicos.

Os ossos descritos no estudo de Costa foram encontrados pela primeira vez em 1961 pelos paleontólogos Carlos de Paula Couto e Fausto Luís e Souza em uma cavidade esculpida pela água em uma rocha – chamada de tanque natural –, no Sítio Paleontológico João Cativo, no município de Itapipoca, Ceará. De lá, foram enviados com vários outros fósseis descobertos na região para o Museu Nacional.

Esse foi o primeiro registro de fósseis de aves em tanques naturais do Nordeste brasileiro, apesar de essas cavidades naturais existirem em abundância por ali, com material paleontológico em seu interior. “O caso das aves é especial porque os ossos desses animais são pneumáticos [ocos e com paredes finas capazes de armazenar ar], e isso faz com que eles sejam mais vulneráveis à quebra e degradação depois que o animal morre”, afirma Costa. “Além disso, geralmente as pessoas dão uma atenção maior aos animais da megafauna.”

Artigo científico
COSTA, J. P. da et al. Fossil birds from the João Cativo paleontological site, Itapipoca, Ceará, Brazil. Journal of Ornithology. On-line. 26 jul. 2024.

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