Google deixa a China: o bem venceu o mal?
Depois que o Google e outras empresas tiveram seus servidores invadidos por hackers — ataques provenientes da China e possivelmente ligados ao governo chinês — o gigante das buscas ameaçou parar de censurar os resultados de busca, contrariando as regras do país. Depois de trocas de acusações, o Google finalmente acabou com as pesquisas na China, redirecionando quem visitasse o Google.cn para a página não-censurada de Hong Kong. O governo chinês, em questão de dias, passou a censurar resultados do Google.hk. Agora surgem relatos de que empresas como a Dell e a GoDaddy estão saindo da China. Será esta uma vitória sobre a liberdade de expressão? Ou corporações americanas estão tentando impor valores ocidentais à China?
É o editor-chefe do Gizmodo americano, Brian Lam, que defende a segunda alternativa. Para ele, o fato de que o Google tentou desrespeitar a censura do governo chinês foi uma tentativa de forçar, goela abaixo, valores ocidentais em um país com cultura diferente. Algo semelhante, segundo comentaristas, ao que os EUA fizeram com o Iraque.
Invasão cultural
O Brian nasceu nos EUA, mas a família dele é de Hong Kong. Ele conta como a invasão britânica dessa região, que antes pertencia à China, mudou os hábitos da família dele:
Meu avô forçava todos nós a vestir ternos ocidentais na hora da janta desde criança, e a beber vinho francês e comer comida europeia… Para mim, era difícil não sentir que os ocidentais estavam certos quanto aos modos chineses serem coisa de bárbaros.
A história mostra como, várias vezes, o Ocidente tentou impor valores a outras culturas — e nossa abominação a palavras como "censura" parece ser o motivo deste novo embate.
Censura do Massacre da Praça Tian’an men no Google.cn (clique para ampliar)
Censura
Um dos motivos pelos quais o Google saiu da China foi a censura: Sergey Brin, fundador do Google, disse ao New York Times que ter nascido e morado na União Soviética, onde o governo regulava a informação, teve um papel importante na decisão do Google de sair da China.
Mas, lembra Brian, nós também temos censura no mundo ocidental! A China mesmo, em resposta à saída do Google, nota isto:
Na verdade, nenhum país permite o fluxo irrestrito na internet de conteúdo pornográfico, violento, de jogos de azar ou supersticioso, ou conteúdo sobre subversão governamental, separatismo étnico, extremismo religioso, racismo, terrorismo e sentimentos anti-estrangeiros.
O que é mesmo verdade. A diferença entre a censura no mundo ocidental e a censura na China, segundo Brian, é que nossas preocupações são as de uma sociedade capitalista. O maior exemplo (dentre vários exemplos) é nossa censura de conteúdo protegido por direitos autorais: sites que são tirados do ar por compartilharem músicas, vídeos são removidos do YouTube por violarem direitos autorais etc. Não estamos pensando, como no comunismo, no bem de todos: estamos preocupados em proteger o lucro das empresas (que produzem conteúdo de audio e vídeo, no caso). E se pirataria é errado porque viola a lei (no Brasil ou nos EUA), desrespeitar a censura é errado porque viola a lei na China.
Google e China
Além disso, Brian questiona os motivos por trás da decisão do Google. Afinal, o Google é uma empresa, e no final das contas quer lucro: eles querem a liberdade de expressão pelo princípio, ou querem liberdade de experssão para vender mais propaganda e ganhar mais dinheiro?
No fim das contas, quando o Google desrespeita a censura, ele desafia o poder e a cultura da China. E quem somos nós para dizer que o Google (e o mundo ocidental) é bom, e a China é o mal? Para Brian, os chineses têm todo o direito de ver o Google como um exportador de ideias estrangeiras, que faz propaganda das corporações e aceita a censura da mídia para proteger o lucro das empresas. Afinal, penso eu, não podemos supor que um país queira mais liberdade e obrigá-los a aceitarem isso — algo tão contraditório quanto obrigar uma população a escolher seus governantes. (Pense nisso!)
Por fim, Brian traça um paralelo entre Google e China: ele vê o Google como uma força imperialista, expandindo-se pouco a pouco por vários negócios, e tem medo de ver este titã ganhar força e crescer sem controle. E este, na verdade, é o medo que muitos americanos têm da China.
Declaração Universal dos Direitos Humanos
Contraponto
Alguns comentaristas discordaram da argumentação do Brian. Igualar direitos de copyright a direitos humanos básicos é falacioso: a proteção de direitos autorais depende de um sistema econômico (capitalismo); a proteção de direitos como liberdade de expressão e julgamento justo não depende do capitalismo para existir. Igualar a censura de conteúdo como pornografia, terrorismo etc. à censura da liberdade de expressão também é uma falácia: existe uma diferença entre proibir algo nocivo à sociedade (como pornografia infantil) e proibir um direito básico. E, finalmente, eles lembram que o crescimento do Google não é inevitável: usar o Google é uma escolha — a censura, não.
A grande questão aqui, penso eu, é reconhecer que a liberdade de expressão é um direito básico, que qualquer sociedade deve ter — e não um valor ocidental, como pensa o Brian. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, que garante direitos como a liberdade, igualdade, direito à vida, a julgamento justo e à liberdade de expressão, vale internacionalmente e foi ratificada por vários países, inclusive pela China. (Sim, antes da Revolução Comunista, mas mesmo assim.) Além disso, a ação do Google não foi uma imposição arbitrária: foi uma retaliação. Sim, eles querem ganhar dinheiro, mas sair do país onde mora um quinto da população mundial não parece ser o melhor jeito de obter lucros.
Você pode ler toda a argumentação do Brian no Gizmodo americano. E afinal, o que você acha? [Gizmodo US; imagens via e via]