A ocorrência de deuses moralizantes na religião ocorreram depois — e não antes — da emergência de sociedades grandes e complexas, segundo uma nova pesquisa. Esta conclusão muda o pensamento convencional sobre o assunto, que pregava que deuses moralizantes são tipicamente citados como um pré-requisito para a complexidade social.
Deuses que punem as pessoas por suas indiscrições antissociais apareceram em religiões depois do surgimento e expansão de sociedades grandes e complexas, de acordo com uma nova pesquisa publicada na revista Nature. A descoberta sugere que as religiões com deuses moralizantes, ou religiões pró-sociais, não eram um requisito necessário para a evolução da complexidade social. Foi somente até o surgimento de diversos impérios multiétnicos com populações superiores a um milhão de pessoas que deuses moralizantes começaram a aparecer — uma mudança das crenças religiosas que provavelmente funcionou para assegurar uma coesão social.
A crença em deuses vingativos — que punem as populações por suas indiscrições, como deixar de realizar um ritual de sacrifício ou que envia um raio como resposta a um insulto — é endêmica na história humana (isso é o que os pesquisadores chamam de “amplo castigo sobrenatural”). É muito mais raro, no entanto, que religiões envolvam divindades que impõem códigos morais e punem seus seguidores por não agirem de maneira pró-social. Não está totalmente claro por que as religiões pró-sociais surgiram, mas a hipótese de “deuses elevados moralizantes” é frequentemente invocada como uma explicação. Acredita-se que a crença em uma força sobrenatural moralizadora era culturalmente necessária para fomentar a cooperação entre estranhos em sociedades grandes e complexas.
De fato, várias religiões ao longo dos últimos milênios testemunharam a emergência de religiões pró-sociais, incluindo o moralizador deus abraâmico e a crença budista no karma. Enquanto as religiões satisfazem uma série de necessidades, tais como oferecer sentido e conforto existenciais, elas também serve como mecanismos de controle social. No caso das religiões pró-sociais, argumenta-se que existe uma conexão íntima e essencial entre as sociedades complexas e a crença em um deus moralizante — uma conexão que a nova pesquisa agora coloca em questão.
A nova pesquisa, liderada por Peter Turchin, do departamento de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Connecticut, foi um esforço para entender essa relação de forma mais científica. Até o momento, a maioria dos estudos sobre o assunto baseou-se em experimentos psicológicos ou análises comparativas transculturais, e não em dados históricos. O novo estudo foi um esforço para preencher esta lacuna.
Entendendo o estudo
Para tal fim, Turhcin e os colegas dele analisaram dados históricos sobre estruturas sociais, normas religiosas, crenças morais e uma série de outros fatores em centenas de sociedade em toda a história do mundo. Uma grande base de dados contendo informações históricas, arqueológicas e antropológicas foi usada para este estudo. Esta base de dados é chamada “Seshat: Global History Databank” e foi estabelecida em 2011 por Turchin, juntamente com os colegas da Universidade de Oxford, Harvey Whitehouse e Pieter Francois — os dois auxiliaram neste novo estudo.
A base de dados Seshat, batizada em honra da deusa egípcia do conhecimento e manutenção de registros, é um projeto em andamento para rastrear mudanças históricas importantes e sociológicas ao longo do tempo. O projeto tem como objetivo incentivar a pesquisa baseada em dados e prevenir enviesamento em análises — um problema comum na pesquisa historiográfica.
Para o novo estudo, Turchin e seus colegas analisaram quase 50 mil registros, abrangendo os últimos 10 mil anos da história mundial — do Neolítico até o início dos períodos industriais e coloniais. Mais de 400 sociedades diferentes foram incluídas advindas de 30 regiões ao redor do mundo. Ao todo, 51 medidas diferentes de complexidade social e quatro medidas de divindades morais foram usadas para avaliar qualquer potencial entre os dois fatores. Medidas de complexidade social incluem população, tamanho do exército, a presença de estradas, sistema judicial e textos científicos. Deuses moralizantes eram identificados por crenças como um deus elevado que criou o universo e ativamente influencia na moralidade humana.
“É verdade que alguns pesquisadores usam medidas mais sofisticadas envolvendo coisas como realizar experimentos para medir o grau de crença em deuses moralizantes, mas isso só pode ser feito em sociedade contemporâneas”, observaram os pesquisadores em um comunicado à imprensa. “Não conseguimos voltar ao Egito antigo para perguntar para as pessoas em quanto elas acreditam na deusa Maat, que tem o poder de punir crimes na vida após a morte.”
É importante ressaltar que os pesquisadores controlaram as relações históricas passadas, como a disseminação do cristianismo e do budismo, entre as sociedades estudadas para assegurar que os resultados eram consistentes entre várias religiões analisadas.
A análise de dados da Seshat mostraram que a crença em deuses moralizantes apareceram após — e não antes — o crescimento da complexidade social. Deuses “que se importam se somos bons ou maus surgiram tarde demais para incentivar a ascensão inicial das civilizações”, informaram os pesquisadores em um comunicado. E quando essas crenças apareceram, elas ocorreram nas chamadas “mega sociedades”, que são sociedades com mais de um milhão de pessoas.
“Isso sugere que, mesmo se deuses moralizantes não causaram a evolução de sociedades complexas, eles podem representar uma adaptação cultural que é necessária para manter a cooperação em tais sociedades, uma vez que elas excederam determinado tamanho, talvez devido à necessidade de sujeitar populações diversas em impérios multiétnicos a um poder comum de nível superior”, dizem os autores no estudo.
Então, sem a presença de deuses moralizantes vingadores para manter os cidadãos de sociedades complexas, é razoável imaginar como essas sociedades conseguiam se manter intactas. Uma possibilidade detectada pelos pesquisadores é que rituais diários ou coletivos — o equivalente à missa de domingo no cristianismo — apareceu antes na ascensão da complexidade social. Tais rituais, dizem, “podem ter permitido que novas crenças e práticas se espalhassem, e se estabilizassem, dentro de populações muito maiores do que era anteriormente possíveis.” Mas uma vez superado o limiar de uma mega sociedade, a coesão produzida por estes rituais não eram o suficiente para manter as coisas em ordem.
Um possível descuido neste novo estudo é a possibildiade de que deuses moralizantes criaram, de fato, a expansão inicial da complexidade — o problema é que essas datas simplesmente não existem, até porque essas sociedades iniciais não mantinham registros escritos. Os pesquisadores admitem que esta é uma possibilidade de distinção, mas “o fato de que registros escritos precederam o desenvolvimento de deuses moralizantes em 9 das 12 regiões analisadas (por um período médio de 400 anos) — combinado com o fato de que a evidência de que deuses moralizantes não foram encontradas na maioria das sociedades não-alfabetizadas — sugere que tais crenças não foram espalhadas antes da invenção da escrita”, explica um dos autores do novo estudo.
Ahmed Skali, um pesquisador do Departamento de Economia, Finanças e Marketing do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália, descreveu o novo estudo como “fascinante”, dizendo que ele “destaca o enorme progresso que a comunidade científica fez em entender por que e como nós chegamos às sociedades que temos hoje em dia”. Ele admitiu ter ficado surpreso com os resultados.
“Minha melhor leitura das evidências disponíveis foi que deuses moralizantes surgiram antes, e então as sociedades os utilizaram para reforçar a coperação”, disse Skali ao Gizmodo. “Por essa razão que a ciência empírica é tão empolgante, e tais estudos cuidados planejados, como sete, ajudam a mudar nossa compreensão do mundo em que vivemos.”
Skali disse que o fato de impérios multiétnicos poderem ser sustentados por religiões pró-sociais faz bastante sentido, dando como exemplos dois califados islâmicos que ocorreram do século 7 ao século 16 no Império Otomano, entre outros. Ele também achou interessante que a cultura de escrita tende a emergir antes da aparecerem deuses moralizantes. O especialista especulou que é mais fácil para o conceito de deuses moralizantes ser disseminado uma vez que a tecnologia permite, num processo similar ao que ocorreu com a Reforma Protestante que se espalhou por meio da prensa de Gutenberg na Europa durante o século 16.
Por fim, o estudo sugere que as pessoas não se comportavam moralmente por medo de uma vida infernal ditada por um deus moralizante.
“Em vez disso, há evidências que sugerem que a rotina de rituais ajudavam com que as pessoas se unissem”, disse Skali. “Isso é um achado fascinante.”
[Nature]